domingo, 14 de dezembro de 2025

Não há glamour em saber que o nome foi inspirado em uma máquina de costura (assim me contou meu pai). Mas há  a obstinação em encarnar a potência , maquinar a costura do real, acoplar o corpo e ferro e produzir o mundo.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Durante a oficina Desvendando Afetos, no Instituto Abrapalavra, uma das participantes evocou Antígona, e a referência me fez voltar à obra. Me lembrei dessa mulher que desafiou o decreto do rei para enterrar o irmão e de como esse ato ainda nos interpela hoje, quando o medo parece ser o afeto que sustenta o laço social. Em O circuito dos afetos, Vladimir Safatle diz que o medo foi o sentimento político fundador da modernidade, o cimento que uniu os corpos pela ameaça e pela obediência. Antígona rompe esse circuito. Ela é o corpo que não teme a punição, a palavra que insiste no impossível: amar e cuidar mesmo quando a lei proíbe.
No Seminário 7, Lacan lê seu gesto como a fidelidade ao desejo, essa força que nenhuma norma consegue domesticar. Para ele, Antígona não é heroína moral, ela é sujeito do seu desejo, ou seja, alguém que vai até o limite da linguagem para sustentar o que a move. Já Hegel via nos atos dela o embate entre duas éticas legítimas: a da cidade (Creonte) e a da família (Antígona). Judith Butler, mais tarde, enxergou corpos e amores que não cabem nas leis do parentesco: aqueles cuja dor e luto não são reconhecidos pelo poder.
Ouvi-la surgir em nossa roda me fez pensar mais detidamente em Antígona, e em como a peça não é apenas mito, mas modo de existir. Ela encarna o instante em que o sujeito atravessa o circuito do medo (FEAR): esse afeto que, como lembra Jaak Panksepp, paralisa, submete e se move em direção ao cuidado (CARE) e ao luto (GRIEF), os afetos que fundam o vínculo e a compaixão. Antígona não obedece por medo; ela age por desejo, sustentando a dor e o amor como forças políticas.
Talvez o que nos comova tanto em sua história seja justamente isso: a coragem de perder tudo sem perder a si, de transformar o medo em gesto ético. No fundo, toda vez que alguém sustenta um ato de amor, de criação ou de resistência contra o peso da norma, Antígona ressurge; devolvendo ao humano a potência de cuidar, desejar e viver mesmo diante do desamparo.


Não se é linguistas e poeta impunemente. Tou aqui observando o “For Mei” desses óculos e pensando na situação do recém formado brasileiro. Uma pesquisa recentes do Semesp mostra que 29,5% dos recém-formados ainda não conseguiram o primeiro emprego. É a primeira vez que temos tantos recém-formados fora do mercado de trabalho. O levantamento do Semesp/Workalove aponta que em que cursos como História, Relações Internacionais e Serviço Social esses números chegam a quase 30% de egressos sem atividade remunerada. Os dados não mentem: estamos formando pessoas para um mercado que não as quer.
Esses óculos tão divertidos parecem me dizer
“Parabéns pelo diploma, agora abra seu MEI.” A celebração da formatura se mistura à exigência de virar empresa de si mesmo, porque a carteira assinada , essa ficção de estabilidade, encolheu até caber num slogan.
Há uma ironia silenciosa: o óculos feito para olhar o futuro expõe, na verdade, a precarização do presente. Um país que escreve “for mei”, mas entrega “MEI”. Um país que empurra os jovens para fora do país ou para a autonomia compulsória, quando o que eles queriam, no fundo, era só trabalhar nas profissões para as quais estudaram recebendo salários dignos.




terça-feira, 9 de dezembro de 2025

desespero

meus pensamentos não encontram casa 
o endereço da infância 
num papel que ninguém lê
no conforto do encontro 
corpo 
erótico
afeto
encosto para não cair
cobertas curtas não cobrem meu medo
o abandono pendula
nas palavras de mamãe
- vós que aprendi cedo demais -
a sentença antiga
-todos somos sós
só os bichos ficam -
afeto sem juiz
um pássaro branco pinga sangue
a menina pede socorro
duas feridas abertas 
onde antes havia voo
"foi meu amigo que jogou pedras"
- amigos não ferem - precisei dizer
sua mão em meus cabelos ancora o presente
a cidade continua rodando fora do quarto
desejo pede espaço
permanecer 
não deve
custar 
o movimento
como um carro que percorre a esmo a cidade 


quarta-feira, 8 de outubro de 2025

a dignidade das coisas que não desistem

gosto de fazer 
o caminho de casa 
até o trabalho 
à pé

em outubro as calçadas
ficam cobertas pelas flores
que caem dos ipês

e hoje havia um cabide
estendido na calçada
como quem descansava 
dos ombros
esperando um corpo

não estava torto
só um pouco sujo
solto ali
com a dignidade 
das coisas que não desistem
pendurado no nada dizendo
"ainda sei sustentar"

mamãe
a primeira ambientalista
que conheci - teria, 
sem titubear - catado
colocado no braço
junto com as roupas doadas
os panos de prato
lavado na bacia
onde lavava roupas
as pernas em volta
nos domingos de sol

hesitei, pois sei 
de minhas gavetas cheias
lembrei do laranja do uniforme 
da SLU
de tudo que vinha do lixo
do seu sorriso
ao encontrar um brinquedo inteiro
um chinelo de par imaginário
(ou só as correias)
uma blusa quase nova
a carne, a verdura quase boa 

mamãe ainda é 
a colecionadora 
de pequenas sobras
sombras de indignidades

sustentei a recusa
afinal há todos os cabides 
há roupas demais
em meu armário
e há essa nova fase 
azul bebê - cor 
de lágrimas
da maciez
e do silêncio

e o cabide?
será que continua
quieto
oferecido
na calçada?
será que resiste
à fome limpa,
à sólida escassez
do mundo?

sábado, 4 de outubro de 2025

A visibilidade é uma armadilha

“A visibilidade é uma armadilha”, escreveu Foucault, e eu sinto essa frase reverberar em mim como uma sentença paradoxal. Quero ser vista, mas o desejo de visibilidade se confunde com o medo de ser reduzida ao olhar do outro. Quando apareço, estou sujeita a interpretações, julgamentos, distorções. Quando desapareço, sinto-me abandonada, sem prova de existência.

Carrego um medo antigo de me tornar invisível — trauma que nasce na infância, quando a ausência de atenção parecia significar inexistência. A criança que fui ainda grita: “olhem para mim”. E a adulta que sou percebe que esse grito pode me aprisionar em redes de aprovação e exposição.

Na vida e nas relações, oscilo entre a entrega plena e o receio de me apagar. Ser presença não é apenas ocupar espaço físico ou digital, mas afetar e ser afetada. Às vezes me pergunto: qual é a medida justa entre estar presente e não me perder no reflexo dos outros?

Nas redes sociais, esse dilema ganha contornos cruéis. Ali, cada aparição é vigilância, cada silêncio é esquecimento. É como se eu tivesse que performar presença para não desaparecer, mesmo quando o desejo seria recolher-me. O algoritmo, tal como o panóptico de Foucault, captura meu desejo de ser reconhecida e o devolve em doses que nunca bastam.

Estou aqui hoje pensando que minha luta é por um lugar onde a visibilidade não seja prisão, mas escolha. Onde a presença não dependa de curtidas nem de olhares furtivos, mas da potência de estar em relação com autenticidade. Talvez a saída seja deslocar o foco: não perguntar o quanto me veem, mas o quanto eu consigo me ver sem me esconder, onde sou vista sem performar, o quanto posso existir inteira sem precisar da vitrine. E não é por acaso que esse post esteja sendo ilustrado pela foto recortada pelo olhar da amada @ana2018carolina, alguém que vem me proporcionando a mais maravilhosa experiência de se deixar ver e de me fazer sentir vista. Obrigada amor ♥️


terça-feira, 16 de setembro de 2025

qual a melhor medida do amor?

há isso

— todo o tempo

que gastei

para ser

isso que chamo EU —

e há

a mulher

que me escolheu:

ela me ama,

cruza a cidade ao vento,

vê pela manhã

eu me vestir

dormir

dançar

comer

sorrir

ela me vê.

e nisso pulsa, inteiro,

em meu peito aberto

amor verdadeiro

domingo, 7 de setembro de 2025

Pinguins

ah, a alegria dos começos

e o esforço do primeiro verso

(o que veio primeiro?)

podia dizer da sua intenção

de me enxergar

na prateleira

e dizer: venha

quando eu já tinha decidido escolher

teve sua disposição

de encarar a gangue de amigos

aquele sorriso

(parava fácil a afonso pena inteira),

a decisão de ficar

o primeiro beijo,

o cheiro cítrico de flores no quarto

em seus cabelos,

no travesseiro

(calcinhas perdidas nos pés da cama),

os lençóis guardando suas curvas,

as marcas de suas águas –

ah, suas águas sobre mim

a despeito do acordo

terapêutico

dramático

“não vai se apaixonar tão rápido” ou

“quatro encontros antes da cama”

de cara eu te oferecia o pijama

e cabia tão lindo em você

a ingenuidade da promessa

de explorar a casa

só pra nos colocar em fuga

(droga de retorno surpresa)

o mundo cabe inteiro no espaço

entre suas covinhas

quando você sorri

saudade é a palavra

que multiplicamos

cem vezes nas nossas vozes

(duzentas vezes nos áudios de whatsapp),

na distância, nas mensagens

e há a calma que mora

nos nossos encontros,

na posição de conforto para dormir,

seu corpo em repouso

e o ronronar

que virou

minha canção de ninar

e que não ouso interromper

carrego seu nome desde a infância:

a menina bonita

da classe do fundamental

se eu fosse menos nietzschiana

chamava de destino

o que estamos construindo

há medo, confesso,

mas também há a paz

e a ausência de drama

por isso aposto todo dia

é cedo, eu sei

mas vou te desenhar

um casal

de pinguins

e te convidar:

vem viver par em mim

sexta-feira, 25 de julho de 2025

atlas de um corpo em exílio

a pele ainda fala dialetos extintos

mesmo sob o céu limpo

onde o silêncio é idioma oficial

há uma rachadura invisível

atravessando o chão

de mármore das bibliotecas

e é por ela que minha sombra escapa

deitada em páginas onde nunca fui escrita


cada rua sem buzina

é um espelho de aço

refletindo o grito

que eu segurei

no vômito


tudo é respeitável

e esse excesso me afoga

ausência de barulho

acentua o ruído que trago nos ossos


sou a viajante

o passaporte carimbado de ausência

o nome riscado de dentro

uma mulher que caminha em inglês

e sangra em português


não há corpo que migre

sem carregar suas ruínas embutidas

prótese de um amor

historicamente mutilado no abusivo

arquivo em segundo plano

processando-se

mesmo quando a janela principal mostra montanhas

minha alegria tem cláusulas de contenção

sorrio com legenda:

“isto não é amor, é costume”


o exílio não é o país:

é o gesto automático

de pedir desculpas

por existir com mais volume

do que me permitiram


no banco da praia

às margens do Pacífico

ensaio a minha revolução


não é sonora

não é coreografada

não é instagramável

é meu corpo se recusando a se curvar

quando há atraso para amá-lo


livros me olham com ternura estrangeira

imigrante de mim


aprendo a andar descalça

sobre os gramados

que não pedem desculpa por crescer


a pergunta não é mais quem me feriu

mas:

quem em mim

continua a ofertar flor

ao punho que esmaga

minha liberdade tem sotaque

as botas pesadas do meu perdão


escrevo

devagar, em letras minúsculas,

um novo tratado:

não serei o altar de nenhuma

falta de escolha

nem sílaba que se dobra

em qualquer sentença

as mão firmes com os quais

finalmente escrevo

em exílio, sim

mas em alfabetização

aprendendo a dizer

não

sem precisar me traduzir

sexta-feira, 11 de julho de 2025

pra te ver por inteiro

é cedo

e o mundo

ainda não acontece

nem uma xícara vazia

nem o sol na janela

mas tua lembrança

já ocupa meu pulso

dormi na promessa

sonhei teus olhos de paz

teu colo, um país morno

onde quero pousar

meu cansaço

da banal violência do mundo

escrevo

pra acordar o dia

e ouvir tua voz

mas aqui dentro

acalento

o desejo manso

de te ver por inteiro

deslizando

no meu pra sempre

domingo, 6 de julho de 2025

manual de contenção para almas em erupção

e o que vem depois da erupção?

a lava esfria.

silencia o chão.

dizem que vira pedra,

que endurece.

mas ninguém vê

o que brota de dentro.

o que queimava,

agora, terra preta,

abriga raiz.

do fogo contido

nasce terra fértil.

é tão triste perder o vulcão,

mesmo sabendo

das florestas.

sábado, 31 de maio de 2025

Isso aqui é pra quem já teve medo…

Mas escolheu amar mesmo assim.

Vem comigo, mulher…

Esquece o medo, bota no bolso

Coragem é salto alto no asfalto grosso

É cicatriz que vira tatuagem

É flor que brota em plena estiagem

Minha alma tem batida, minha pele é tambor

Não corro da vida, corro pro amor

Não vim pra ser sombra, eu sou miragem

Visão rara no deserto da coragem

Segue o fluxo, sem retrovisor

No peito, bússola que aponta pro amor

Caminho de estrela, brilho sem pudor

Encontros assim… não rolam toda hora, demorô

Amar é trapézio sem redes

É voar mesmo ouvindo as pedras

É dizer “sim” no meio do caos

É escrever poesia de correria pro sarau

Coração meu não bate, ele rima

Verso quente, fogo que anima

Quem me ama me encontra inteira

Não sou metade, sou tempestade e bandeira

Segue o fluxo, sem retrovisor

No peito, bússola que aponta pro amor

mulher do norte caminho de estrela, brilho sem pudor

Encontros assim… não rolam toda hora, demorô

Não foge do fogo, sente o calor

A vida é agora, sem ensaiador

Entre o medo e o pulo: escolhe o ardor

No escuro do mundo, eu sou refletor

Segue o fluxo, sem retrovisor

No peito, bússola que aponta pro amor

Caminho de estrela, brilho sem pudor

Encontros assim… não rolam toda hora, demorô

sábado, 19 de abril de 2025

antes de amanhã

há uma dobra no tempo

entre o voo e o chão

uma brisa que hesita

antes de ser vento

meu corpo é chama

e espera

com todas as perguntas abertas

como janelas que não querem fechar

desde já gozo

a alegria do seu toque

cheiro e desejo

vem —

mas vem real,

com o que houver de amor e verdade

no bolso

domingo, 13 de abril de 2025

Oração da Entrega Serena

Que eu não me esqueça, no meio da chama, de que sou também a guardiã do fogo.

Que o desejo me aqueça, mas não me queime.

Que a paixão me ilumine, mas não me cegue.

Que eu celebre cada gesto de ternura,

sem esquecer de olhar para as raízes.

Que eu receba com alegria o que me é dado,

mas que eu não me perca na espera do que ainda não chegou.

Que eu reconheça a beleza deste encontro,

como se reconhece a beleza de uma flor rara: com encantamento, sim,

mas também com o cuidado de quem rega todos os dias,

sem pressa de vê-la desabrochar.

Que eu saiba ouvir as palavras doces,

mas que eu preste atenção aos silêncios.

Que o amor que eu ofereço volte para mim em dobro:

não apenas nas promessas,

mas nas escolhas diárias.

Que eu não diminua meu brilho para caber no sonho de ninguém,

mas que eu encontre quem escolha caminhar ao lado da minha luz.

E que, se este for o amor que merece morada,

ele permaneça — não porque eu o prenda,

mas porque ele queira ficar.

Assim seja.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Voltando pra casa

Antes mesmo de você chegar, eu já tinha falado de você pra eles. E foi como se eles já te conhecessem. Sabem do teu sorriso, como se tivessem te visto de perto. Sabem do jeito que a tua presença me acende, como se tivessem sentido calor da sua chegada. Quando você atravessar a porta, amor, não vai ser visita — já vai ser de casa. Porque assim, quem faz bem pra mim, vira bem pra eles também. Fica morando na memória da gente como coisa boa, como benção da vida. E eu tenho certeza que, quando você chegar, eles vão sorrir daquele jeito de quem já sabia… Você acabou de chegar, mas é amor antigo, você está só voltando pra casa.

terça-feira, 8 de abril de 2025

condensação

febre no pijama
desnorte
(quem podia imaginar?)
teu nome tatuado 
no pulso da minha sede

mordida de fruto vivo
caroço em labareda
pico, abismo, 
tua boca que puxa 
como maré — sem aviso

deslizo:
sou o carro-luz
furando o escuro das tuas coxas
queimando as faixas da cidade

não rezo
engulo, mastigo
minha língua, tua oração pagã

te imagino: pequena, vulcão de bolso
implosão portátil
teus “sim” pingando no terço sujo dos meus dedos

febril
encharcada
estilhaço de tua fome atravessando minha pele

não durmo
arquitetando teu corpo no escuro

coleciono teu gozo
como quem rouba mapas de tesouro
e queima as rotas depois

te penso
e o mundo evapora.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Cartografia da Espera

Eu tinha me esquecido que o tempo tem suas próprias estações.
Mesmo quando a pressa aperta o peito, há algo de bonito em esperar.
O afeto também é construção lenta, como um jardim em pleno outono, repletos de jasmins. Afeto que não teme o frio da noite,
porque sabe: a seiva já corre por dentro, invisível aos olhos apressados.

A distância é assim também — parece um vácuo, mas na verdade, é solo fértil.
Entre nós, há quilômetros que não sabem medir o que cresce em silêncio.
O que é um mapa, diante da bússola que carrego no peito?
Sigo, instintiva, como raiz que atravessa pedra, buscando umidade no subterrâneo do tempo.

Algumas presenças chegam miúdas, como sementes levadas pelo vento,
mas se instalam fundo, criando espaço onde antes havia só ausência.
De longe, você me habita como quem mora nas frestas do dia,
no intervalo entre as tarefas, na curva mais calma do pensamento.

Hoje, o que eu tenho é essa alegria silenciosa:
sentir que, mesmo sem tocar sua pele, seu nome faz morada nas minhas rotinas.
Que existe uma dança secreta entre nossos dias, uma correspondência que o mundo não vê.
E que as boas histórias, aquelas que valem ser vividas,
sempre encontram o caminho — mesmo quando as estradas se perdem,
mesmo quando a geografia parece não ajudar.
Há rotas que só o coração conhece.

segunda-feira, 31 de março de 2025

cifrado

tua boca
soletra em mim
o idioma viscoso da pele

cada carícia
reconjuga verbos extintos
no feminino plural

no escuro, inventamos ficções
nossos corpos narram
em línguas censuradas

mestres na arte
de fraturar sintaxes
dedos decifram
o alfabeto da espinha

amar é possível

com a língua e os dedos
no sulco hermético
dos mapas
ocultos do corpo


segunda-feira, 24 de março de 2025

De vidro

não é mais carne que se aproxima

é corte —

com rugas de cetim e dentes de açúcar


carrego um deserto em meus ouvidos

e elas vêm

com orações rotas

conchas quebradas

e uma pressa de se espelhar no que não fui


convidam

para encenar o pacto

os olhos cheios de nódulos

libido em mutação

gestos à míngua —

dançam em torno da fogueira do não dito

a língua enrolada no próprio umbigo


estou só

nem por isso exijo resgate

subo o galho mais torto da árvore

e faço dele meu altar

respiro entre líquens

acendo fósforos em minha própria boca.


desaprendi a gramática dos pedidos

inabitável

para quem só conhece o mapa

das carências urgentes


gozo negar a repetição

tranco a casa e a alma

os pés sujos do afeto doente


já não amo como quem implora

agora

acendo velas para deuses que não existem

e invento

a minha

liturgia



sábado, 8 de março de 2025

Ser mulher

Ser mulher é ocupar espaço em um mundo que tantas vezes tentou nos conter. É transformar dor em potência, medo em coragem, silêncio em voz. É carregar histórias no corpo, no olhar, no riso.

Ser mulher é dança e resistência. É saber que a mudança acontece no movimento – na arte, no trabalho, nas ruas, no amor, na liberdade de ser quem somos sem pedir permissão. É desafiar padrões, reconstruir narrativas, criar novos caminhos para quem vem depois.

Hoje é dia de lembrar que não somos apenas uma data: somos todas as mulheres que vieram antes de nós e todas as que ainda virão. Somos a força que não recua, a beleza que não se limita, o futuro que não se apaga.

Que nosso passo seja firme, que nossa voz seja alta, que nossa presença seja inegável. Porque ser mulher é existir em potência todos os dias.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

promessa

haveremos de nos lembrar

entre beijos

de todo desejo

que nascerá

naquela mirada

minha cabeça

levemente erguida

entre suas coxas

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Secção

seja bem-vinda.

tome um café, fique à vontade.

entre meus dedos

minha língua

mas abrir a porta

não solta os dentes.

o que fica, quando se vai

é o gosto do café

a colher, parada dentro da caneca

Nem o nome resiste na boca

só o gosto do café

sei o que fazer.

sem som, sem explosão

cortes secos me habitam

do outro lado, ninguém se move

ou vira estátua

ou poeira

ou nada

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Desvio

Disse "apaixonada com", e riram.

Se diz "por", afirmaram,

o certo é cair em si,

amor tem direção,

feito seta, destino,

um porquê bem amarrado.


Tropeço entre preposições e promessas,

confundo léxico e laço,

sou mulher de soltar verbos no vento

e amar sem gramática.


As coisas se movem no escuro,

aves que ninguém vê.

O tempo afunda sem alarde,

a vida que era minha, espalhada

pelas ruas onde não estou.


Apaixonada com

manhãs que abrem as janelas,

café quente que escorre a saudade,

livros que não terminam em ponto final,

dança dos dias sem ensaio,

a vida, que me quer

sem correção.


A casa cheia de vento.

Meus filhos, constelações distantes,

presenças ausentes

se acomodam na mobília,

nas cadeiras que já não arrastam no chão.


Eu os fiz inteiros,

frutas esperando a faca,

o miolo dos melões,

branco, intacto, intocado,

agora longe de minhas mãos.


Quem me amaria com toda a minha força?

Quem me tomaria com a mesma fúria

com que a água arrebata os barcos?

As marés não voltam para buscar o que deixam,

os pássaros não voltam, os pássaros.


Ser aberto é um fato, mas dói.

Preciso manter-me intacta,

fruto no galho,

a escuridão no ventre dos melões.


Fui despida, entregue,

e agora restam essas mãos

vazias na câmera escura,

prendendo fitas que ninguém mais verá.


A literatura que me toca –

o grotesco, erótico,

o belo que arde estranho, imperfeito,

o perturbador em fogo baixo.


O desejo de consumir,

ser consumida no amor,

romances que sejam porto,

e naufrágio.

O imperfeito que pede a boca, os dentes.


Delírios manuscritos.

Na escrita – me perder, me encontrar.

Ser abismos e claridade.


Sou eu quem traduz febres em palavras,

quem dança com o que falta,

quem faz do erro um lume.


Não amo só por,

amo com—

com pele, riso e fome,

com tudo que me faz errar

e, ainda assim, existir.


Quem aguenta o amor,

esse animal ferido,

essa fome sem cura?

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Vigília

Daí de onde me vês, 

sou forte, vigorosa, 

mas durmo tão pouco. 


Vem comigo, 

mas só se velar 

minha sesta 

ao meio-dia, 

depois das refeições. 


No sono, entrego. 

Entrego vulnerabilidades. 


És capaz, amor, 

de me ver dormir 

sem temer 

que eu precise 

mais que o suficiente 

de você? 


Não temas

eu mesmo cuido 

do que dorme em mim 

zelo pelo que me  falta.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Vulnerável

triste como um bebê

abandonado sozinho no berço

pensava que era saudades

mas era sono


sinto muito, Ana

ontem contava 

uma banalidade sobre nós

e percebi que esqueci seu nome

o rosto, aos poucos

vai se apagando 


estão de volta os tempos 

de navios

e poesia

tanta potência não colabora

é preciso estar vulnerável

para ser amada


entra-se na paixão pensando

"desse jeito é a primeira vez"

mas raro mesmo

é se lambuzar

da própria vida

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Seios

Somos mamíferos porque carregamos o poder de nutrir estampado no peito. Sem pudor, a ciência diz: as glândulas mamárias se organizam em lóbulos, ductos, auréola. Matéria-prima para o primeiro sustento. Mas nos sonhos, esses mesmos seios projetam outras tramas - a mística do toque, o aconchego ancestral, a delícia de alimentar e ser alimentada.

Em um cochilo, me vislumbrei amamentando amamentando em alguém e acordei perplexa. Lá, no território onírico, o peito era fonte generosa, guardava promessa de vida e de prazer; um gesto tão simples e íntimo que, no entanto, carrega séculos de mitos, tabus e contradições. Em outras paragens, recordo que a galáxia em que flutuamos chama-se Via Láctea "caminho de leite". Do grego gála, somos amarrados a esse "suco de peito" que nos abraça como espécie, lançando o cheiro doce do passado.

No meu poema (ver De mim ninguém sai com fome p. 75), escancaro as entranhas do mamilo, a textura e a cor, o poder de gozo, a fronteira entre o sacro e o profano. É curioso como a tal "civilização" permite aos homens exibirem seus mamilos impunemente, enquanto as mulheres são proibidas de ostentar o seu. E, assim, nossas culturas seguem vingativas — penalizam quem ousa mostrar a fonte geradora de vida.

Talvez seja essa força paradoxal que faz dos seios um emblema de tanto fascínio e repressão. Neles, cabem nutrição, erotismo, política e sonho, entrelaçados numa trama corporal e simbólica. A força dos seios no imaginário não é só biológica: é a nossa herança, a nossa maneira de existir e de criar - gerando leite, poemas e galáxias inteiras.


#ForçaDosSeios

#Mamíferos

#ViaLáctea

#CaminhoDeLeite

#PoesiaCorporal

#Amamentação

#TabusSociais

#CivilizaçãoVingativa

#CorpoPolítico

#MísticaDoToque



quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Orquestra de luz

a meia-noite sussurra

please, please, please,

meu susto hesita

na pólvora dos teus olhos


será bom

que anjos orquestrem 

meus medos?


declaro ao céu 

riscado de luz

não somos mais as mesmas

não há nada

do que se envergonhar

nem nada a temer

as horas tecem seu trabalho 

vestes de prata

e acontecimento