quarta-feira, 8 de outubro de 2025

a dignidade das coisas que não desistem

gosto de fazer 
o caminho de casa 
até o trabalho 
à pé

em outubro as calçadas
ficam cobertas pelas flores
que caem dos ipês

e hoje havia um cabide
estendido na calçada
como quem descansava 
dos ombros
esperando um corpo

não estava torto
só um pouco sujo
solto ali
com a dignidade 
das coisas que não desistem
pendurado no nada dizendo
"ainda sei sustentar"

mamãe
a primeira ambientalista
que conheci - teria, 
sem titubear - catado
colocado no braço
junto com as roupas doadas
os panos de prato
lavado na bacia
onde lavava roupas
as pernas em volta
nos domingos de sol

hesitei, pois sei 
de minhas gavetas cheias
lembrei do laranja do uniforme 
da SLU
de tudo que vinha do lixo
do seu sorriso
ao encontrar um brinquedo inteiro
um chinelo de par imaginário
(ou só as correias)
uma blusa quase nova
a carne, a verdura quase boa 

mamãe ainda é 
a colecionadora 
de pequenas sobras
sombras de indignidades

sustentei a recusa
afinal há todos os cabides 
há roupas demais
em meu armário
e há essa nova fase 
azul bebê - cor 
de lágrimas
da maciez
e do silêncio

e o cabide?
será que continua
quieto
oferecido
na calçada?
será que resiste
à fome limpa,
à sólida escassez
do mundo?

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