terça-feira, 10 de novembro de 2020

servidão

 a submissão

das três pontas 

de ossos

sobre a cerviz


sólido

o medo das asas

infiltradas

nas escápulas


ossos do ofício

desenhar

o cosmo

no asfalto

aligator



quinta-feira, 5 de novembro de 2020

koan

Que me interesse a resposta 

à pergunta do mestre

zen sobre qual é o som de palmas 

de uma só mão

não sou capaz de 

evitar o arrepio nas orelhas 

deixo que me envolva 

a memória, caixas alinhadas 

a textura e o cheiro sem nome 

de sua pele, é quase um crime 

tentar dizer, mas era o som

e a alegria de vigorosas 

palmas, duas mãos

nosso encontro 

apenas existindo

sobre as cobertas

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

voz


"Cabe à voz do ator fazer com que novas percepções e novos afetos surjam, ambos a rodear o conceito lido e dito."
Deleuze

aquela voz de convite
dizendo em sussurro
se abraça
adianta


nós com os cacos nas mãos
e ela convoca o novo
a nudez absoluta da coisa
e sussurra
cola


suave transmove
à cena do assombro
faz-se luz
onde todos somos

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

amuleto

se arrancar a primeira folhinha 
do tinhorão antes dos 18 dias 
ele morre, monocotiledônea 
parece uma palavra que dança
parece que elas dançam
as três especies juntas 
no vaso
a folha rosa, vermelho, verde e branco
nasce de uma batata
um bulbo
os kalina dizem que é mágica
obiá pode ser um amuleto 
ou uma mulher-amuleto
como um bulbo ou uma folha
de tinhorão pode ser um amuleto
os kalina benziam os brancos
com folhas de caládio
para torná-los mansos
caladium não parece uma palavra-coisa
mágica?
quando morre um kalina
fazem festa, comida e dança
eu danço antes o meu funeral
que é para adiantar
quando os brancos chegaram pelo mar
os kalinas o chamaram deuses
mas não, eles trouxeram 
muitos funerais
eu achava que era a deusa
dos tinhorões
e alimentei e molhei
tanto que a flor se fechou 
e parece que morre
as cicatrizes de uma folha
não regeneram e dói 
como doía olhar os dedos do lucas
amassados quando fechei o carrinho
em 1994

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 Quase doze anos de "crise" e eu me pergunto: historicamente podemos chamar de crise?

Temo ter que responder que não. 

Não estamos em crise, estamos instalados num status quo de governabilidade precária, onde uma a uma, as representações democráticas se servem à captura.

Há muito compreendi a nocividade da ideia vertical de líderes, sacerdotes e gurus e confesso que venho potencializando estudos filosóficos (filosofia aqui compreendida como amor a toda sabedoria e ciência) acerca de um devir ingovernável. 

Vejamos se tenho ombros para isso. 

Abaixo a imagem da Pimoa Cthulhu,  uma pequena aranha marrom de 10mm e pernas extremamente longas, muito  comum no oeste da Califórnia. Esta aranha tece uma malha maravilhosa, que vem dando ideia aos pensadores acerca de uma alternativa para estas redes que nos aprisionam.




domingo, 13 de setembro de 2020

quarta-feira, 8 de julho de 2020

estóica

nem sempre palimpsesto
houve tempo de reescrever a dor de ontem
até fazer buracos no papel
o supérfluo exercício
de analisar os símbolos
águas de uma fonte inesgotável

hoje é esse desabar no sono
como em um abismo
o gozo e a ternura absurda
a despeito da montanha de mortes
há que se aprender que ossos
dizem tanto da morte
quanto da vida

sábado, 16 de maio de 2020

duração

conto as flores da orquídea
sete, como os dias da semana
as pétalas, sua pele
cheirosas, viçosas e belas
até noventa dias em flor
tanto a ensinar ao amor
o seu e o meu universo
dois mapas traçados 
em papel manteiga
que a gente desliza
para ver se encaixa
fronteira com fronteira
das seis às vinte e duas
hora máxima em que você avisa
"preciso dormir, amor"
qualquer estação da lua
para olhar e repetir, "amor"
o vocativo-fronteira
que a gente atravessou
quando decidiu que já era
subvertendo o sentido da gíria
amar e pensar que 
a despeito das sombras
que ameaçam a nós e ao mundo
minha mente vai mais devagar
como a tartaruga do poema do manoel
que li através da massa translúcida 
e enorme do strudel que você abriu
sobre a mesa, como faziam
as moças da áustria
quando estavam prontas para casar
o pensamento manso, você no banho
cantando "joão e maria"
sem óculos
você não me veria
que bom que seja assim
agora não é sobre mim
o pensamento também  vai sereno
quando conto histórias
para te fazer dormir
daí você descreve 
um roteiro preciso
que envolve frutas, vinho
danças e as canções da bethânia 
e acorda a mulher em chamas
que mora em mim
você chegou e por um instante
me pareceu tão competente
para entender o tempo, essa entidade
a essência dos acontecimentos
então por favor me responda
quanto tempo é que demora 
pra passar a sua ausência?


domingo, 10 de maio de 2020

nesse meio-tempo

eu, por mim

me mantenho em silêncio
sob duas mantas 
trazendo a memória  
seus olhares de deleite
completamente descobertos de véus
não há  cobertores que façam jus àquele calor

terça-feira, 5 de maio de 2020

renascentista

tal qual moçambique, Itália, bahia ou tocantins
a claridade da manhã inunda as casas
aqui porém
a luz atravessa amena
o tecido fino da cortina

antes que abra teus olhos
numa curva lânguida
boceja, boca, lábios, mãos e corpo

os longos cílios varrem 
gradativamente o véu da noite

no canto, a princesa e a ervilha
os braços, côncavos exatos
para cinco tipos de abraços

a pele diáfana, tela
para tatuagens dos dedos

nada separa
românticos de contemporâneos
modernos de renascentistas
quando o que se aspira
é capturar na memória 
o cálido e as chamas
do que não se fotografa

segunda-feira, 20 de abril de 2020

náusea

enquanto desfilo insone
a língua estilhaçada
o ouvido estilhaçado
a mão estilhaçada
gatos dormem, indiferentes
à máquina de produção
aos aparelhos de destruição

mas que não se confunda
minha vigília com virtude

quinta-feira, 16 de abril de 2020

150 batidas

150 batidas


ser jovem
correr
de mãos dadas com você
e entrar no mar
mergulhar daquele jeito
que a onda não derruba
escondidas debaixo da água
debaixo da curva
de suas dúvidas

parecia que dizia
acabou
ouvi, foram 150 batidas
era cavalo galopando
em meu coração

a ideia
de viver você
fez jorrar coragem
para o dilúvio, colapso, apocalipse
quem me imaginaria
tão destemida
mesmo depois de tantos fins

o real dessas canções que escorrem
de seus dedos
movem o desejo em mim
a sutileza do fogo
de seus olhos que abrasam
como pode? tão úmidos

era para aprender desde cedo
que a palavra junto
tem vinte e cinco significados

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Gente

Amanhã faz um mês. Saí de casa duas vezes para comprar comida e foi só. Preciso confessar, o isolamento me agrada porque sou inapta com interações. Normalmente não gosto de conversar. Sou excessivamente racional e as interações sociais às vezes precisam ser superficiais para serem leves. Não sou leve. Sou pesada como chumbo, tóxica até. O paradoxo é que a rejeição me estraçalha e eu preciso ser amada como quem precisa de ar. Daí o álcool para compensar. 
Estou em prantos, vi agora de manhã que uma médica de Manaus chorando no no twitter e  dizendo que não aguenta mais ver gene morrendo, clamando por mais vagas nos hospitais e apontando para o carro da funerário já no pátio. Não para de morrer gente. Não para de morrer gente. 
Genocidas. Do governo do país aos patrões que não são capazes de abrir mão do lucro, são todos chacais ferozes e assassinos. Temo muito por meus filhos que ainda precisam sair para trabalhar, por minha mãe e meu pai que são idosos, por meu sobrinhos, por meu ex marido, por meus irmãos e por minha irmã enfermeira, por meus sobrinhos e por toda gente que mesmo que eu não cite nominalmente são GENTE, pessoas que deveriam ter o direito a vida com abundância. 
Durante muio tempo militei corpo a corpo por direitos dos excluídos até a exaustão gatilhar uma doença mental grave e profunda. Decidi concentrar minhas forças na educação, em atividades de prevenção e de fortalecimento da cidadania. Funcionou comigo, a pequena doméstica que virou poeta e professora, poderia funcionar com meus estudantes. Mas sempre fica essa sensação de que eu poderia fazer mais, mesmo sabendo que fazer mais poderia significar a extinção de mim mesma nessa luta. Estar segura em isolamento expande essa sensação. Uma benção e uma maldição. Como lidar com o sentido óbvio do privilégio? 
Acabei de por o lixo para a coleta de segunda e chorei mais um vez pensando nos coletores. Não estou aguentando. Não quero mais lives, não quero cerveja, não quero anestésicos. Desculpe-me Nietzsche, era para amar a realidade com a toda a potência de minha vida, mas como suportar ter a vida poupada quando tantos estão ameaçados, tantos estão partindo?
Refaço mentalmente a listas de escritoras e escritores que, tendo a vida poupada na catástrofe, não suportaram o privilégio e sucumbiram. Suas histórias estão aí para que eu saiba o que nos faz tombar. Não é a bebida, a comida ou a escrita que me salva, preciso constatar. 
Tento pensar em quem,  Amos Oz, por exemplo, fez a vida valer a penas produzindo lutando pela paz, produzindo uma grande obra e principalmente permanecendo vivo, depois das tragédias. Não que tenho a força ou a genialidade de Oz, mas preciso urgente achar sentido em permanecer só comigo por 24 horas sendo tão má companhia.
Ontem conversava com a Carol sobre o livro da Mariana Botelho, "O silêncio tange o sino", e de quanto eu tinha aprendido com ela e com ele - o livro- a mirar o abismo, a abraçar meu vazio. Há momentos em que não faz sentido mesmo. E é só isso. Acolher essa ausência absoluta, mirar o abismo e ser mirada por ele. 
É um grande texto, me desculpem. Mas foi a maneira que encontrei essa manhã de mirar o abismo sem saltar. 
Bom dia!

domingo, 29 de março de 2020

vulnerabilidades

e finalmente poder
abraçar forte

mas sem sacudir
ou soerguer
é preciso garantir
que não que não exponham
as peças soltas
de seus quadris
do ventre
e às vezes do peito

finalmente poder
abraçar
e guardar segredos

domingo, 15 de março de 2020

Esta semana estive com outras poetas apresentando em um Sarau Comemorativo no Centro Cultural Salgado Filho. Me impressionei com a beleza do espaço, as obras de arte e principalmente com a maravilhosa biblioteca que eles tem lá. Estive uns vinte minutos emocionada diante do Diário de Fida Kahlo:















Percorrer essas páginas foi como estar diante da artista, ouvindo seus segredos sussurrados. Reconheço a importância desse exercício pois em tempos difíceis eu também compunha cadernos de processo. Entendo sua importância para costurar os fragmentos da mina alma, para desacelerar a locomotiva dos meus pensamentos.  São muitos, mas com a mudança ficaram para trás. Recuperei dois deles recentemente e é uma alegria percorrer suas páginas:






Estou aqui me perguntando porque parei de fazê-los e acho que tenho dois motivos: A alopatia tem o dom de concentrar minhas energias na racionalização e nesse sentido a escrita é a coisa mais criativa que consigo fazer. Outra e a grande quantidade de libido que eu invisto no meu trabalho de articuladora de leitura. Em tempos regulares eu costumo dedicar mais de quinze horas por dia para que esse trabalho seja um sucesso. Formar leitores é um trabalho duro, não acontece espontaneamente.
E o que acontece com o desejo de movimento, cor, forma, textura que a arte deveria por em marcha? Acho que o que salva é o carnaval, as festas a fantasia, as danceterias, a caracterização para as contações de história, as ilustrações para os murais e painéis da escola...
Talvez tudo isso não tenha o vigor de um diário criativo. São apenas águas escorrendo por uma rachadura. Mas não me queixo. As vibrações da minha intensidade somadas a absurda loucura do mundo que vivemos às vezes me conduzem para maus encontros. Agora mesmo estou às margens de um colapso financeiro e estive sem apoio profissional por algum tempo.
É difícil mas não impossível. Tenho família, amigos e a escrita. De alguma maneira escrever aqui talvez seja o meu "Diário de Frida".

sábado, 14 de março de 2020

Estive ontem na defesa de tese de Leiner Hoki. Aprendi com ela que os espaços perdidos dos manuscritos antigos são descritos pelos historiadores com colchetes. Sua tese fala sobre histórias não contadas das tríbades, safistas, lésbicas e sapatãs. Por quase uma hora ela, dentre outras coisas, apresentou registros poéticos e artísticos, num esforço de corrigir a invizibilização e o apagamento da história dessas mulheres. Fez isto como uma riqueza de detalhes excepcional, e eu vi diante de mim serem preenchidos algumas lacunas da história lésbica. Durante sua fala passei um bom tempo pensando em como os colchetes se aproximam do imaginário feminino. Nas roupas femininas mulheres, naquela suas formas de grandes lábios e até mesmo nessa capacidade intuitiva de algumas mulheres tem de completar o intangível. Os colchetes foram uma escolha simbólica muito interessante.
Sempre que eu conto histórias ou escrevo poesia digo "mulher" sabendo que ergo uma parede e um muro. É preciso que exista uma mulher simbólica para que lutemos contra o seu esmagamento mas também e preciso implodir o imaginário que encarcera as miríades de mulheres que existem no mundo.A tese de Leiner caminha nessas duas direções.
Recomendo a leitura da tese de Leiner Hoki. Assim que estiver disponível virtualmente disponibilizo aqui. 

quarta-feira, 11 de março de 2020

regresso

Regresso

Era eu e você em um encontro pleno, onde a casa, a terra, a vida eram macias e desemaranhadas.
Éramos felizes de um jeito descrito apenas pela literatura, pois contínuo, intenso, definitivo.
Despertar foi difícil.
Eu olhava pra você e me perguntava: - Como ela pode não saber? Foi tão real!
Caminhava ao seu lado e quase não te ouvia esperando o momento exato em que tudo iria começar. Qual esquina, qual passo, qual o próximo evento colocaria em marcha o nosso destino?
Para mim era certo, aquele encontro estava lá no futuro, macio e desemaranhado, macio e desemaranhado.
No entanto comecei a perceber que esse momento não iria chegar.
Chegava miséria, violência, terror, desumanidade, autoritarismo. Golpes severos em minhas capacidades místicas e otimistas de ver o mundo.
Me ressenti da vida e principalmente da poesia.
No começo achei que não conseguia mais escrever. Depois reconheci aquele padrão que me faz recusar a beleza, como Jonas que não queria ir a Nínive porque sabia que aqueles homens maus iriam se converter.
No fundo achava que a qualquer momento a feiura iria ruir e o mundo voltaria a ser belo novamente.
Não está funcionando.
Eu aqui me dobrando sob o peso da maldade desse dia que, em escala, é maior que a de ontem, que é maior que a de anteontem.
Abrir mão da minha capacidade de contemplação fez de mim uma mendiga rastejante, chacoalhando desesperada a minha intimidade em troca de migalhas de afeição.
Perdão poesia, perdão.
Ainda bem que sou refém da beleza.
Espero que me aceite de volta aqui.

quarta-feira, 4 de março de 2020

de queixo erguido

Olho de longe o amor, como quem observa um felino armando o bote. Quem inventou essas couraças, gestos e palavras para me blindar, evitar sofrer?
Lanço mão do sarcasmo e me chamo de trouxa. Alimento a ideia de que em alguma relação, que não as minhas, haja a possibilidade de ser feliz totalmente sem enganos. Dizer para não ser, parece tão esperto.
Me apego aos falsos exercícios de controle, na minha "vasta"experiência e finjo que, diferente de todo mundo, não estou vulnerável, sei o que estou fazendo. Faço finta nos botes do amor romântico.
Vejam como é bela minha armadura. É uma pena ela tolher qualquer abraço que eu mesma possa me dar.

terça-feira, 3 de março de 2020

As alegrias da maternidade

 Acabei de audioler "As alegrias da Maternidade" de Buchi Emecheta. Esbarrei por acaso na obra no app da Storytel e comecei a ouvir com um pouco de má vontade, talvez por força simbólica do título. Mas não se enganem , o livro é uma adaga. Corta fundo. 
Uma leitora do Goodreads chamada Cheryl descreveu abaixo a história. Faço minha suas palavras. 
"Se Lagos tivesse sido uma amante (Ona), seu amante (Agbadi) teria sido o britânico, e se eles tivessem produzido um filho, esse filho (Nnu Ego) teria sido a Nigéria. 
Aquela criança teria se casado com seu primeiro marido (o protetorado britânico - colonização), mas não teria tido filhos com ele (Oluwum), para que ele a abandonasse. Ela se casaria novamente (pós-colonização-Independência), desta vez produzindo filhos com seu segundo marido (Nnaife) e juntos, eles teriam lutado para superar as lutas conjugais (poligamia, patriarcado e muito mais). 
Ou seja, se você estivesse olhando este livro através de lentes simbólicas, que, se você leu escritores pós-coloniais como Wa Thiong'o, Achebe e Soyinka, será difícil evitar fazer isso.

No entanto, a história gira em torno de Nnu Ego, cujos pais são o chefe Agbadi e Ona (a amante do chefe e o amor de sua vida). Embora o chefe tenha algumas esposas (o cenário é o de uma sociedade poligâmica), todos sabem que Ona tem seu coração. 
No entanto, Ona se recusa a casar com ele porque seu pai não permite, e também porque ela teme que, uma vez que seja sua esposa, perca seu amor e respeito: "ela suspeitava, no entanto, que seu destino seria o mesmo de as outras mulheres dele deveriam consentir em se tornar uma de suas esposas. " 
Então, no leito de morte, quando dá a luz a uma filha, Nnu, Ona faz o pai prometer que " irá permitir que ela [Nnu] tenha uma vida própria, um marido, se ela quiser".
"Aquele que ruge como um leão."
"Meus filhos, todos vocês se tornarão reis entre os homens."
"Aquele que ruge como um leão."
"Minhas filhas, vocês todos crescerão para abalar os filhos de seus filhos."

Se você já viu a injustiça no diálogo, descobriu as limitações da sociedade patriarcal que Emecheta tenta mostrar em sua ficção. Não se deixe enganar pelo título, pois a história não é simplesmente sobre as alegrias da maternidade, é uma investigação sobre a interseção entre feminilidade e maternidade, e o cenário é um lugar onde as mulheres são banidas por serem solteiras e sem filhos .
Eu sou um prisioneiro da minha própria carne e sangue. É uma posição tão invejável?

Na cultura de Nnu Ego, uma mulher poderia ser uma amante ostracizada, sim, mas uma mulher estéril, não. Ao ler, você sente a pergunta sutil, mas clara, que acompanha esse ideal: por que deve ser assim?
Mas quem fez a lei que não devemos esperar em nossas filhas? Nós mulheres subscrevemos essa lei mais do que ninguém. Até mudarmos tudo isso, ainda é um mundo de homens, que as mulheres sempre ajudarão a construir.

Eu li este livro anos atrás, mas decidi revisitá-lo depois que Thiong'o me lembrou as proezas literárias africanas como Emecheta e Dangarembga, quando tentei seu livro, Mágico do Corvo . Emecheta é o autor de mais de dez romances, alguns dos quais são semi-autobiográficos. Alega-se que ela começou a ter filhos aos dezesseis anos e quando seu primeiro marido queimou seu primeiro romance depois que ele se recusou a lê-lo, ela saiu e tentou criar seus filhos por conta própria. Ao ler este romance, houve momentos em que me lembrei de So Long a Letter, e ainda a narração distante e a estrutura de frases simples que se baseia no diálogo, é muito diferente da voz íntima em primeira pessoa que fortalece o romance de Ba. O que Ba faz bem nesse livro é abordar um leitor que pode não ter uma comunidade compartilhada, mas valores compartilhados; um tipo de universalidade que agrada ao leitor não nigeriano ou africano. As alegrias da maternidade são muito específicas da região e, embora fossem apenas granulados, há palavras ou descrições que podem ser compensadoras para alguns leitores caucasianos. No entanto, existem temas importantes incorporados ao diálogo (algo que Emecheta faz melhor que outros), o que me faz pensar em visitar mais de seus trabalhos este ano.
... Se você não tem filhos, o desejo por eles o matará, e se você tiver, a preocupação com eles o matará"

Recomendo com louvor. 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Arte - Yasmina Reza

Fui ontem com uma amiga ao Teatro da Cidade assistir a peça "Arte", escrita pela dramaturga francesa Yasmina Reza, e dirigida por Sérgio Abritta. Em cena, por cerca de 1 hora e meia os personagens Sérgio ( Gustavo Werneck), Marcos ( Alexandre Toledo) e Ivan (Marcus Labattitrês amigos de longa data, conversam acerca da compra de um "quadro branco com listas brancas" por 100 mil reais. 
Por trás do pretexto da discussão acerca do valor da arte contemporânea, o que temos são diálogos nos quais uma conversa civilizada degenera para uma circunstância de antipatia mútua e xingamentos. Ao final, o diálogo áspero corrói todo o verniz de respeitabilidade, burguesia presunçosa e o que fica é a uma conversa ácida, a pretensão hipócrita e o descuido emocional. 
A convocação ao riso é mais que alívio cômico. Trata-se de um catalizador para o dissipar a angustia do espelhamento que nos toca, ou seja, a devastadora sensação de realidade diante da falsidade do verniz social e a selvageria que se encontra abaixo de nossa superfície. 
A dramaturgia é ricamente construída também a partir da iluminação, da quebra da quarta parede e do deslocamento do cenário pelos atores. As peças de cena, inteiramente brancas, são transferidas continuamente marcando as mudanças de espaço. 
Eu amei a peça. Ela me confrontou com a relação que estabeleço meu com verniz e minha selvageria. Me fez pensar como, no fundo, todos nós, humanizados, civilizados, estamos com os nervos partidos, carentes e prestes a explodir. Não que eu esteja aqui a fazer defesa ao que minha amiga Cristina chama de "sincericídio". É mais que isso. A peça me convidou a pensar em maneiras honestas de sai da superfície sem precisar machucar ninguém. 
Recomento com louvor. Grata Fabóla Farias por me aplicar.



terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Francine van Hove

Tudo bem, nem tudo é rejeição. Às vezes a gente acorda e entende como o medo transformou o "pra sempre" em "nunca mais". Se pega acariciando as paredes
macias do calabouço da solidão e pinta com cores iluminadas uma placa que diz: "o que farei hoje pra me fazer feliz.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

nível

um misto de alívio
e constrangimento
sentimentos inúteis
contra a devastação

de que me vale
saber o que distingue
a palavra chuva
da palavra rio?

se ainda te amo
belo horizonte
é apenas porque
meu amor
ainda vive aqui

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

A Libélula azul

Tinha a visto e a fotografado mas não me dei por satisfeita. Aquele tom de azul não podia ser um espetáculo para meus olhos apenas.

Corri até ele contando, mostrando a foto, chamando para ver. Era uma libélula azul. E tinha ficado imóvel por tempo suficiente para que eu pudesse fotografá-la a poucos centímetros de distância.

A princípio ele resistiu, não queria ir. Estava mais interessado nos peixes que nosso amigo estava pescando. Mas cedeu e caminhou em direção ao pequeno córrego onde eu havia fotografado o inseto. Ele era assim. Não compreendia um terço das coisas que eu dizia, não acompanhava em nada como eu significava o mundo. Mas ia. Sempre ia.

Nos aproximamos do lugar onde estivera a libélula azul rápido o suficiente para vê-la sendo capturada pela língua rápida de um sapo.

Minha decepção era visível. Tão bonita e aniquilada assim tão rápido!

Aquilo me atravessou de maneira tão intensa que escrevi um poema logo que cheguei em casa.

libélulas azuis
vivem até quatro anos
seu voo, beleza, ovos
são uma promessa

onde pousa esta promessa
quando é mais rápida a fome
da ponta da língua viscosa de um sapo?

Hoje, enquanto relia um conto da Clarice Lispector chamado "Esperança", indicado pela professora da pós-graduação em Proleitura,  para elaboração de uma fanfic, me lembrei desse poema e ele ganhou novos sentidos.

De mim também foram engolidas muitas promessas (casa, casamento, local de trabalho, rotina) e foi preciso me acostumar com a beleza do que ficou apenas na memória e as fotos.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

mais além

disse por três vezes
nunca mas ambicionar validação alheia
olho no espelho e pisco
que bela senhora nos tornamos
tenho tempo e espaço para escrever
meu trabalho é uma beleza
e esses pássaros que me acordam
estão cheios de poesia

mas são tantas
as coisas sem serventia
que mantemos
uma roupa que não serve mais
um antigo CD
a coleção de garrafas vazias que sei
nunca vou usar
e esse olho latente
do Outro, a bradar
o que eu devo ser

não queria escrever poesia
como que faz filosofia
tantas palavras
quando bastava o silêncio