quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Ainda estou bem assustada com o assalto ao celular outro dia mas acho que  já consigo falar sobre. Não sei se todos sabem mas eu sou apaixonada pelo corredor cultural da Praça da estação e Viadutos Santa Tereza. No dia eu estava passando sobre  o viaduto três horas da tarde e, deslumbrada com a caminhada, decidi fazer um vídeo contando minha alegria (não precisa me chamar de trouxa, eu mesma já fiz isso umas cinquenta vezes).
Dois garotos em situação de rua me abordaram para tomar o celular. No susto travei o celular na mão e era meio patético, eles não pareciam estar muito seguros e arma que portavam simulava um aparelho de descarga elétrica que não dava choque de verdade. Em embate corporal com um deles acabei caindo no chão, sem soltar o celular. Ele estava bem assustado com o buzinaço e com minha reação. Meus óculos escuros (que eu amava) cairam e ele gritou ao outro que o ajudasse. Conseguiram arrancar o aparelho das minhas mãos. Eu vi o óculos e os vi descer correndo as escadas. Tinha que escolher: pegar os óculos ou persegui-los. Fiz a pior escolha. Eu corri atrás deles até o Edifício Central, onde os perdi. Fiquei sem o celular e sem os óculos.
Esse episódio me fez descobri algo perigoso sobre mim: a reação ao assalto.
E nesses tempos novos que estou vivendo tenho a impressão que não é a única coisa que vou nova que vou descobrir sobre mim.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

uma ilha é um lugar completo

um dia triste
fundo branco
colorido abandonado
era bom quando 
ainda acreditava
que havia onde chegar

caminho, e faz barulho
consegue ouvir o ruído 
dos cacos aqui dentro?

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

moto perpétuo

nem bem amanhece
e o poeta rastreia
anseia o mistério do ouro
estuda alquimia
raiva, tristeza e fome
mastiga o pranto entre
os nacos de comida
cata a poesia
ordinária e invisível
entre as alimárias do dia

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

náufraga

uma sede me consome
o mar do seu nome
lanço ao oceano
numa garrafa
dada a ilha
que me cerca

mas o frasco
não se afasta
insiste em oscilar
em minha orla

domingo, 29 de outubro de 2017

eles não estão prontos

criar filhas com braços fortes
para carregar bandeiras
ventres livres
para parir outro mundo
e um coração preparado
para a solidão

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

outras maneiras de dizer

diz que falo muito do amor
porque não vê
o amor é uma faca
delicada, mas afiada

observe o amor
cortando o medo
quando retruco
tão lindo esse livro
sobre coisas de menina
esse poema de Ori

é o amor que secciona
o medo em sua fala

você diz
se entre os seus
não querem falar de Ori
não fale

mas, bater cabeça
diz o amor
também pode ser
dizer não

o amor aparta
entre os dentes
este seu susto

não discuta essa historia
de coisas meninas

o amor parte ao meio
a cena dos pardais
no terreiro e proclama
há outras maneiras
de se sentir em casa

o amor esmaga entre
os dedos o medo
agora, exato
enquanto te escrevo
esse poema de amor

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

tão pouco

É pouco, tão pouco
um sorriso que sustente os dias
mas não o é esse canto dos grilos
a suportar a noite nos olhos?
enquanto você dormia
eu arava meu afeto, sutil
e leve como todo amor
deveria ser

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

por culpa do imprevisto

que ruidosa é a chegada da noite
(ora, a quem eu quero enganar?
o silêncio que sua ausência impõe
nenhum verso abafa)

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

dissecção

uma mulher lança mão
de táticas de peixeiro
e abre o ventre
entre as vísceras a bile
um fardo de fúria
(o que é isso? uma pedra?
um rim?)


há que se considerar
respeitosamente a história
antes de lançar fora um apêndice

não sabe o que fazer com a dor
de não ser só, só sua
a regularidade dos abismos
a atordoa, um poema às vezes
é uma belíssima adaga

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Estrangeiros em nós mesmos seguimos inventando interlocutores que acolham nossas vicissitudes, amores que nos presenteiem com palavras, com manhãs ensolaradas.
Isso me faz pensar em quanto as invenções de Pessoa poderiam ser úteis nesses tempos de identidades fluidas. A propósito, penso que nunca mais vou ler o Pessoa sem me lembrar de você. Algumas pessoas, quando me atravessam, deixam fragmentos indeléveis.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

o dia não pode esperar

um gato caminha sobre o muro
elegante como só os gatos podem ser
contemplo-o como se pudesse ter um gato
(silêncio, um susto este pensamento)
paraliso como quem ouviu
o click da mina sob os pés

soletro meu nome para atendente
e finjo que sei quem sou

domingo, 15 de outubro de 2017

a liberdade esse pássaro

desdobro resignada o mapa
há dias de mergulho em suas linhas
tocar o fundo com a ponta dos dedos
os estilhaços do meu peito chacoalham
numa sinfonia estranha
você disse, e tive que concordar
que mapas são artefatos de homens
irmã, nenhum bordado costura
meu peito em ruínas hoje
espero uma manhã luminosa
para trazer a memória
o que me dá alegria





nascer homem Adela Zamudio- Tradução de Norma de Souza Lopes


Nascer homem
Adela Zamudio
Tradução de Norma de Souza Lopes

Quanto trabalho ela tem
Para corrigir a falta de jeito
De seu marido, e em casa,
(Deixe-me assombrar-me)
tão inepto quanto estúpido
segue sendo o cabeça,
porque ele é o homem.

Se alguma escreve versos
- "De alguns estes versos são 
ela só subscreve;
(Deixe-me surpreender-me)
Se que ele não é poeta
Por que tal suposição?
Porque ele é o homem.

Una mulher superior
nas eleições não vota,
 e vota no pior patife;
(Permita-me que me assombre)
com  só saber firmar 
votar num idiota,
porque é homem.

Ele se abate e bebe ou joga
em um revés da sorte;
ela sofre, luta e reza;
ela se chama “ser débil,
e ele se nomeia  “ser forte
porque é homem.

Ela deve perdoar
se seu esposo lhe  é infiel;
mas, ele pode se vingar;
(permita-me que me assombre)
em um caso semelhante
até pode mata-la,
porque é homem.

Oh, mortal!
Oh mortal privilegiado,
que de perfeito e cabal
gozas seguro renome!
Para ele que basta?
Nascer homem.


Daqui ó http://emmagunst.blogspot.com.br/2011/03/adela-zamudio-nacer-hombre.html

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

extraordinário

eu sei amor, que o coração
é um velhaco pintando ilusões
espaços vazios nos átomos
transparências intangíveis
no centro dos nós
poucos afetos escapam
ao escrutínio da razão
quase sempre são
ordinários e vulgares
mas, olhe atento este frêmito
um Nilo turbulento a me irrigar
escolho nadar contra a corrente
isso de vencer a fluidez das águas
desde muito é um milagre

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

criptografia

daqui da minha janela
a noite já está acesa
e por sorte os fogos
se esgotam
queria dizer
"depois de mim
você não será feliz"
daquela maneira dramática
que dizem as mulheres
rejeitadas, mas falta um
"antes", só na sutileza
das letras no meu nome
se dá o encontro. do alto
a noite é muito bonita


terça-feira, 10 de outubro de 2017

miragem

tanto ruído, amor
e ainda dormes, como pode?
compartilho contigo
essa manhã translúcida
limpa, intocada
ela suspende o peso
de todo atraso
também eu, quando cheguei
era tarde

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

em suspensão

no supermercado
estendendo roupas
lendo, escrevendo
corrigindo textos
maquiando
cozinhando
(só vagamente percebendo)
comprando cerveja, frutas, carne
a próxima mensagem
(anotando o que dizer
quando finalmente encontrá-la)
um uso apaixonado das coisas
a arte, a literatura
"quando a gente ama fecha os
olhos beijando" diz Grossman
em "Vie et destin"
no salão de beleza uma
mulher diz "estou apaixonada"
ao que todos se afastam 
como de quem diz
"vou ao psiquiatra"

assovio
baixinho
non, je ne regrett rien
da piaf 
e penso no luxo
da esperança
de voltar a amar

As mulheres choram Mercedes Reynoso Tradução de Norma de Souza Lopes

As mujeres choram.
Choramos por tudo:
porque amanhecemos
entre o soluço da noite
e a voracidade da luz mãe.
Porque quando o vazio
de uma voz despoja
as entranhas,
aprisiona,
e não há menor remédio
que limpar os grandes olhos
com verdade.
Choramos porque nos custa
crer que o corpo hospeda vida,
e depois o arrepentimento
de não desejá-la.
Choramos porque nos cremos donas
de nós mesmas,
porém entre o estado,
a igreja
tua mãe
teu pai
teu amante
a irmã
o vizinho
teus sonhos
teus deveres
a terra
o céu,
no sei já que caralho
é meu

IDIOTAS Mercedes Reynoso Tradução de Norma de Souza Lopes

De todas as idiotas
eu fui a única
que escolheu sexo sem compromiso.
De todas as idiotas
eu fui a única
que bebeu sozinha nos bares.
De todas as idiotas
preferi ser amiga com benefícios
a ser esposa com prejuízo.
De todas as idiotas
eu lhe liguei
só para ver se estava bem.
De todas as idiotas
desprezei ao homem insoso
só para estar sozinha.
De todas as idiotas
sou a que cozinha por amor aos aromas
e não pelos filhos.
De todas as idiotas
sou a que não teme falar
nem teme ficar calada
quando há tempos
em que as pessoas geralmente são
de escasso pensamento.
De todas as idiotas
sou a que ama mais a seus amigos
que a seus amantes.
De todas as idiotas
sou a que prefere mais um homem
com boa ortografia
que com um bom trabalho.
De todas, todas as idiotas,
nunca pretendi destacar-me,
nunca pretendi ser ou não ser,
nunca pretendi irritar,
abusar, ignorar,
sem dúvida até os mais idiotas
sabem que minha poesia é ruim,
que o álcool é o puro elixir
que dissolve  meus dias de angústia.
E cada vez que observo minha janela,
O cigarro se dissipa,
a cama está vazia
e os poemas quietos;
e então sempre fui
a mais idiota
de todas.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

RESENHA DA OBRA “POESIA E ESCOLHAS AFETIVA EDIÇÃO E ESCRITA NA POESIA CONTEMPORÂNEA” DE LUCIANA DI LEONE

Em "Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea" Luciana di Leone propõe, a partir da episteme do afeto[1] , um recorte acerca da poesia brasileira e argentina nos anos 1990 e 2000. Para Leone, o poema é uma escrita que solicita o leitor, que pede a sua entrega. Dessa forma, produz afeto e uma relação entre dois corpos.

Poderíamos então dizer que, afinal de contas, a palavra poética implica uma transitividade (...)Portanto, o leitor não pode se subtrair, ignorar a própria presença frente ao texto; deve, pelo contrário, tomar posse, possuir o poema, incorporá-lo, sabendo que, nesse movimento, ao mesmo tempo que abre (revive) o corpo (morto) do poema, se abre à subjetividade que o enfrenta” (2014, p. 11)
Também o afeto, neste contexto, é uma categoria para analisar as estratégias de disseminação da poesia e investigar as práticas de ler, escrever e editar, bem como pela questão do relacional, isto é, pelos modos de “viver junto” (2014, p. 12) e a organização de coletivos artísticos. Para tanto a autora recorta um conjunto de obras poéticas dentro da grande área " poesia contemporânea" para dar conta do que ela chama de transitividade poética, em que escrita e leitura se relacionam a partir da ideia de afetação, de modificar e ser modificado por aquilo que se lê e se escreve. Embora ela ressalte que essa transitividade e afetividade não sejam características apenas da poesia contemporânea, brasileira ou argentina, justifica parte dos trabalhos poéticos produzidos nas últimas décadas no Brasil e na Argentina.

se constrói explicitamente a partir de uma cena de leitura que alimenta as escolhas afetivas e alimenta a continuidade dos afetos produzidos e, ainda, explicitam essas escolhas como as que guiam seus projetos ( 2014, p. 12).

 Em quatro capítulos, a saber  "Pensamento contemporâneo: o afeto em pauta", "Escolhas afetivas e edição de poesia",  "Poéticas do afeto endereçamento citação e nomes próprios" , "Repensando as escolhas afetivas: por gesto crítico" a autora observa que, se por um lado há uma ausência de representação política e projeto estético na geração que emergiu entre os anos de 1990 e 2000 por outro há a necessidade de lançar luz sobre os diversos vínculos criados entre o leitor e o poema, entre a leitura, a escrita e reescrita da produção contemporânea, encabeçada pelas relações construídas entre poeta, editor, leitor e crítico.  
Talvez o poema e a sua situação de publicação possam ser pensados como sintomáticos de um modo de editar, escrever e ler poesia que ganha força na produção poética do Brasil e da Argentina das últimas décadas. Modo de editar, escrever e ler que investe no que a edição, a escrita, e a leitura têm de prática coletiva, na qual o autor se dissemina, deixando de ser garantia do sentido e dono do escrito, deixando de ser garantia do sentido e dono do escrito, deixando de apelar a uma voz própria, e articulando diferentes tempos, espaços-vozes de forma não hierárquica nem identificatória. (2014, p.14)

Tomando como corpus a produção literária poética publicada em revistas, coletâneas, blogs e youtube (Cine Paissandu para Aníbal Cristobo).  Leone reconhece na poesia desse tempo um "affectiveturn"' ou “virada afetiva”, que teria se materializado na criação de variados “espaços de encontro e produção” de poesia, o que inclui editoras, oficinas, catálogos, coleções, revistas, antologias, além do trabalho de cada poeta compreendido como espaço afetivo (2014, p. 64). Discorre como as sociabilidades einter-relações afetam a produção poética atual.  Essas revistas e coletâneas publicadas física e virtualmente agrupam entre seus autores um conjunto de poetas que se uniram mais por conhecerem-se uns aos outros do que por algum outro fator orgânico. A partir de reuniões informais, que ocorriam por meio de uma divulgação não convencional, ganhou corpo uma produção poética que traz em comum uma série de características que, segundo di Leone, expressam essa sociabilidade nascida das “escolhas afetivas”.
Nesse sentido, segundo a autora, essas produções não podem ser observadas sem se levar em consideração a importância – identificada também em campos como a filosofia, a sociologia e a crítica de arte – da questão do relacional, dos modos de viver junto, dos coletivos artísticos, “com os seus desdobramentos na reflexão sobre a grupalidade, a comunidade, as aproximações e as distâncias entre o eu e o outro, e os efeitos e afetos” (2014, p. 20).
No primeiro capítulo, “Pensamento contemporâneo: o afeto em pauta”, Leone identifica uma espécie de “espírito de época” em que as escolhas afetivas são basilares tanto na poesia contemporânea quanto em outras áreas. Afeto aqui é tido como “afecção e como sentimento, para referir e insistir na sua dinâmica relacional, pela qual os sujeitos e discursos implicados são vulnerados, desfigurados e reconfigurados por essa força que varia de forma contínua” (2014, p. 20). Ou seja, ela entende afecção e afeto como semelhantes por entendê-los como envolvidos na concepção de escolhas afetivas (2014, p. 20).Por serem e exteriores, tangíveis, ainda que as fronteiras interior e exterior não sejam determináveis  (2014, p. 20).
Para construir sua argumentação Leone se apoia teoricamente emSpinoza e Deleuze (considerações acerca do afeto), Giorgio Agamben (o que é contemporâneo), Jean-Luc Nancy (comunidade inoperante), em Roberto Esposito (reflexão sobre comunidade), Manuel Castell (sociedade em redes), Nicolas Bourriaud (relações inter-humanas nas artes), Mario Perniola (pensamento sobre o sentir como já sentido), Florencia Garramuño (expansão do literário).
Com esse aporte Leone argumenta a partir do sentir, dos relacionamentos que permeiam a escrita de poesia e crítica na atualidade e também aponta para a necessidade de uma nova crítica, que em lugar de observar os objetos como fechados em si, devem percorrer os fluxos que os atravessam (2014, p. 40). Segundo Leone:

Seja nas propostas literárias expansivas, seja na atitude crítica ou nas modulações do pensamento contemporâneo em diversas disciplinas, o que fica mais e mais evidente é o interesse contemporâneo, o imperativo ético, de mostrar os contatos, as afecções e os afetos, de pensar para além das fronteiras genéricas e disciplinares, mas sem deixar de ouvir as singularidades que elas possam ter. Ler a partir da noção de afeto participa dessa atitude, pois ela torna impossível a procura ou a afirmação de identidades de autoria ou originalidade claras (2014, p. 41).

Contudo Leone alerta para que tal conceituação não seja esvaziada pelo elogio ou pelas repetições e palavras de ordem, apaziguando as suas potências desestabilizadoras (2014, p. 41).

Leone abre o segundo capítulo “Escolhas afetivas e edição de poesia”, apresentando o objetivo de entender como se dá o fazer junto, nas poesias argentinas e brasileiras contemporâneas. Observa que as escolhas afetivas muitas vezes são entendidas como um dispositivo legitimador de práticas endogâmicas, “nas quais o afeto seria sinônimo de relações especulares, dentro de um grupo fechado de iguais” (2014, p. 44), procurando demonstrar, contudo, que as relações são bem mais dissimétricas. Ressalta que tradicionalmente, o trabalho editorial combina critérios econômicos, políticos e estéticos (2014, p. 44). Daí ela se esforçar em pensar como funciona a publicação de poesia em editoras pequenas e independentes, uma vez que as grandes editoras não se interessariam em divulgar novos poetas pelo grande risco financeiro. Observa que essas pequenas editoras não se veem como concorrentes, mas como garantidoras da continuidade de um projeto comum, ou seja, “antes que uma lógica de lutas e concorrência, parece se destacar uma lógica de afetos conviviais”, em que podem ser sobrepor as figuras e tarefas de escritor, editor e leitor (2014, p. 56).
Percebe-se, no entanto, que os projetos poéticos contemporâneos não possuem definições ou filiações, mostrando que o agrupamento é muito mais em nível de amizade do que de busca por uma linhagem de produção poética.
Assim Leone analisa casos de editoração de livros de poesia e aponta, mais uma vez, para a crítica que a relação amical pode levar a uma endogamia, ou seja, a formação de um círculo fechado de poetas-amigos de difícil entrada. Para a autora essa crítica está fundada em um desconhecimento do funcionamento das edições de livros e de blogs, assim como uma resistência a tratar a afetividade como critério válido. Assim “em lugar de assinalar negativamente a amizade e o afeto entre os organizadores e participantes, o que tentamos mostrar é a importância da pergunta pelo significado do sintoma da insistência no critério afetivo” (2014, p. 121).
No terceiro capítulo, “Poéticas do afeto: endereçamento, citação e nomes próprios”, Leone vai além da matriz convivial na edição e passa a apontar como ela funciona como matriz de escrita poética. Assim a autora apresenta diferentes marcas textuais que aparecem na obra dos poetas como, por exemplo, o de “apresentar o próprio texto como deformado por diferentes vozes” (2014, p. 171), materializados no uso de aspas, caixas de diálogo, signos de interrogação. Outra marca observada é o uso do nome próprio de lugares, nomes e textos que referem à momentos concretos na vida literária, assim como o uso de diversos tipos de citação. Analisando as produções de Aníbal Cristobo (blog Yodebería estar haciendootra cosa) e Marília Garcia (videoAçaí ou cine Paissandu para Aníbal Cristobo), Leone retoma a ideia de trânsito e percurso citada na sua introdução para concluir que:

Trata- se de gestos de destinação e endereçamento que possibilitam uma – provisória, falha, vulnerada, imprópria – configuração do eu. Por isso, se a arte contemporânea insiste nos percursos é porque eles se realizam apenas para ser afetados, como única forma de criar algum tipo de pertencimento, ou de comunidade, quando as cartografias e as identidades declararam seu definitivo enfraquecimento.  (2014, p. 157).

Assim, como todo traslado é afetivo, cabe à arte contemporânea, mediante as falhas do mapa operar contra esse enfraquecimento das cartografias e das identidades e em favor do pertencimento e do encontro.
No quarto e último capítulo “Repensando as escolhas afetivas: por um gesto crítico”, Leone diz propõe como conclusão instalar o incômodo afetivo a partir da inquietação produzida pela poesia (2014, p. 164). Em suas próprias palavras, ela se preocupa com a:

naturalização dos modos de consagração predominantes na poesia produzida nas últimas décadas – a do meu tempo, a dos meus amigos –, modos da consagração das quais a crítica participa intimamente. Daí que a tarefa assumida tenha sido, desde o começo, a desnaturalização desses modos – e não a sua desativação! A tarefa de tornar mais transparentes as tramas da consagração literária, decorrente de escolhas editoriais assim como estéticas, que estão em jogo tanto nas coleções e antologias, quanto nos procedimentos de citação e endereçamento trabalhados nos poemas. ( 2014, p.164)

O livro, de alguma maneira panorâmico e ao mesmo tempo interpretativo, evidencia o esforço de desvelar “as tramas da consagração literária” como provenientes de escolhas editoriais e de escolhas estéticas, que aparecem nas antologias, oficinas e blogs por ela analisada. A desnaturalização dos critérios afetivos e transitivos que a autora propõe faz parte de um exercício em “reinvestir – de incômodo – esse afeto, e sua relação com ideias de comunidade e amizade, tão caras ao nosso pensamento crítico” (2014, p. 164). Ela propõe que suas reflexões críticas sobre as escolhas afetivas possam ser úteis para pensar outros campos poético, artístico ou social, incitando para a possibilidade de que novas formas de organização social ou comunitária no nosso tempo. Segundo ela, uma poética das escolhas afetivas encena relações dissimétricas, entre corpos que se afetam uns aos outros, contribuindo para a possibilidade acima mencionada.
O que atravessa o trabalho de Leone em “Poesia e escolhas afetivas…” é que a autora cuida de evidenciar que a produção poética deixa de ser vista como produto de uma mente genial, para se mostrar como relacional – com outros textos, outros autores, amigos e de “desnaturalizar” as relações entre editores, leitores e autores, ressaltando, contudo, que não é necessariamente prejudicial essa rede. A relação com o “extra-literário”, isto é, questões de editoração, sociais e culturais, aparecem como fazendo parte e construindo o “intra-literário” afetivo, dialógico, relacional, mas muitas vezes também arbitrário, mas também numa perspectiva de trânsito, de encontro e de diálogo. Sua análise contribui para que cuidemos dessa categoria afeto na análise das produções poética contemporâneas de maneira a evitar o vício das “palavras de ordem”, que podem mascarar percepções mais críticas transformar questões sobre os aspectos afetivos e corporais na produção de um saber literário em algo pacificador e que não nos modifique. Em uma entrevista de novembro e dezembro de 2015 para o blog “Bliss não tem bis” a autora disse que, se escrevesse o livro naquela data, ele seria outro. Em suas palavras ela afirma que “Hoje, acho que eu tentaria lançar os fios mais longe, sabe? Tentaria ir para a literatura medieval para poder falar da Marília, eu acho que hoje eu faria isso…”. Entendemos como Leone que uma análise do contemporâneo prescinde de analisar comparativamente as tramas do passado para compreender para onde esta ética e estética do afeto pode nos encaminhar.






 [1] Como descritos por Spinosa e Deleuze

Referências

Luciana di. ​Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea. Rio de Janeiro:  Rocco, 2014. Destaco que​resenha foi realizada a prtir da obra disponível na plataforma eletrônica do Scridb e  por​ ​isso​ ​é​ ​importante​ ​estar​ ​atento​ ​a​ ​paginação,​ ​que​ ​não​ ​acompanha​ ​as​ ​páginas​ ​da​ ​obra​ ​impressa.​ ​
Ver  https://pt.scribd.com/document/356293771/Luciana-Di-Leone-Poesia-e-Escolhas-Afetivas-Edicao-e-Escrita-NaPoesia-Contemporanea​​ ​acesso​ ​em​ ​setembro​ ​e​ ​outubro​ ​de​ ​de​ ​2017.

http://blissnaotembis.com/blog/2015/11/entrevista-com-luciana-maria-di-leone-outras-cenas-de-leitura-e-muito -dificil-viver-junto-num-poema-1a-parte.html​​ ​acesso​ ​em​ ​setembro​ ​e​ ​outubro​ ​de​ ​2017. 




terça-feira, 3 de outubro de 2017

dantesco

em dias obscuros
atravesso de mãos dadas
eu e o meu guerreiro
nove círculos
três vales
dez fossos
quatro esferas

meu guerreiro
é a minha pasárgada 
iluminada

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Xadrez -Rosario Castellanos - Tradução de Norma de Souza Lopes

Porque éramos amigos e, às vezes, nos amávamos;
talvez para acrescentar outro interesse
aos muitos que já nos obrigavam
decidimos jogar jogos de inteligência.

Pusemos um tabuleiro em frente a nós
equitativo em peças, em valores,
em possibilidade de movimentos.

Aprendemos as regras, lhes juramos respeito
e começou a partida.

Estamos aqui faz um século, sentados, meditando
ferozmente
como dar o último golpe que aniquile
de modo inapelável, para sempre, ao outro.

Daqui ó http://www.poesiademujeres.com/2012/05/ajedrez.html

sábado, 30 de setembro de 2017

toda manhã me sussurra seu nome

já te contei do meu silêncio?
era insuportável o peso do mundo
em cada palavra

rasgar mapas poderia ser divertido
não perfurasse
irremediavelmente a rotina

já não quero ouvir
what changes when you change?
o que me aborrece na pergunta
é o que ela esconde

quantos quarteirões há
daqui até você?

outra vez em braços
que não são seus
amanheço


terça-feira, 26 de setembro de 2017

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

risco

num restaurante vegetariano, desinteressadas
conversamos sobre a diferença da ideia
de bem e de mal na bíblia, no alcorão
e no popol vuh (uma churrascaria teria sido
melhor, a gente pensa, mas ninguém fala)
te conto que em sua juventude kierkegaard
era apelidado de "gaflen" porque espetava
as idiossincrasias dos amigos e conhecidos
você me explica sua opinião sobre o pecado
de betsabéia, o tendão de aquiles na história de
sören, divido meu açaí com você e me pergunto
quanto tempo ficarei acordada para ver
o quanto você é bonita quando dorme
quando é que nossas peculiaridades
nos afastarão, quando é que encontros
como esse acontecerão em outro plano
que não o da minha imaginação
esqueço aquele bambo da corda solta
no ar e salto para o susto do risco
penso, como toda mulher apaixonada, que
cortar os dedos nas folhas novas do livro
esquecer os óculos, as chaves já é um sinal
de começo em nossa história de amor

testemunha

presenciar um beijo adolescente
cinquenta e sete segundos 
de beijo de língua 
no corredor do CEFET
cinquenta e sete segundos 

e entender o Kundera em "A insustentável leveza do ser" 

" A sensualidade é a mobilização máxima dos sentidos: observa-se o outro intensamente, procurando captar seus menores ruídos." 

2a versão

testemunho
[norma de souza lopes]

cinquenta e sete segundos 
de beijo de língua
adolescente
no corredor
e aquela frase
que o Kundera falou
- a sensualidade é a mobilização 
máxima dos sentidos: 
observa-se o outro 
intensamente, procurando 
captar seus menores ruídos.

domingo, 24 de setembro de 2017

pergunta

ainda não era noite
quando algo em seus olhos
saltaram da tela
e suplicaram
"me escreve um poema de amor?"

(como se, sem amar,
isso fosse possível)

sábado, 23 de setembro de 2017

nas estrelas

sejamos sinceros
se danço, canto, choro
ou faço poesia
estou em carne viva
carne
viva
é sempre uma busca
que faz sentir
mas não faz sentido

o que não significa dizer
que seria capaz de orbitar
um sistema que não fosse meu
Hercólubus tem seu gêmeo
o sol, ao acaso, aqui perto de nós
e transita noutra órbita
(é engraçado dizer "o sol, perto"
 quando isso significa anos-luz)

cito a astrologia e me lembro
que pode parecer
insólito para as pessoas
comuns, no geral
legítima é a luz e o calor
e isso basta

queria mesmo era lembrar
um detalhe que virasse verso
neste poema para que
você se reconhecesse
mas não temos história
(arrepio só de imaginar
que me lê agora)
   

intervalo

entre nós 
a distância
e a dúvida

traço entre as palavras
como naquelas provas de história
nas quais quem acerta a resposta
presencia um pequeno milagre

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

sábado, 16 de setembro de 2017

versos sobre acontecimentos

na periferia
também foge-se
da indigência da vida social

num churrasco na laje
há há tanta leveza e vínculo
quanto um cheeseburger
na esquina da julieta

algo me consome por dentro
e não é a dor

se eu lhes puser a língua
deixaria o gueto
da poesia contemporânea?

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

ombros

tudo porque quis
procurar no poema
o que escapa
ser medeia de amor
e rancor
(o ódio não é o contrário
companheiros talvez)

cada qual a seu modo 
esconde crenças e medos 
malogros impronunciáveis
imersos na mesma água
da agonia contemporânea
(a ironia é o novo 
mal do século)

destilei entre os dedos
a carcaça de um dia
um dia inteiro, inútil
dói horrores
fosse o brotar de uma asa
eu nem chorava

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

XXXIV Ana Maria Oviedo Palomares Tradução de Norma de Souza Lopes

E quando enfim compreender que o amor bonito o tinhas comigo

Não servirá de nada  
e não vou me importar
que te arranques a alma pensando em nossas noites,
que o despeito te feche as portas do mundo
cada vez que te beijem outros lábios,
que de tanto ansiar seu coração se torne uma pedra vermelha,
fera enjaulada,
como eu rogo agora.

Quando enfim compreender
terei conjurado seu nome,

e se não passar nunca,
pior para ti,

que tiveste a maravilha do fogo entre as mãos
e não te queimaste.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

só mais uma vez

tarelam sobre o que é ser
mulher as desvantagens do
feminismo como quem descreve
a experiência de fumar
sem arder no peito e nos
olhos a fumaça
ou como um letreiro em neon
um sol e uma palmeira na fachada
de um bar, numa noite escura

homem, silêncio
ser mulher, sentir o peso
desse legado
não é algo que se faça
sem ter sido marcado
pelos ferros atávicos
do patriarcado

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Eu transo com a erudição mas é cada beijo de língua na cultura popular e de massa que benza Deus.

domingo, 3 de setembro de 2017

daquele algo que saltou

faltava uma semana para me formar na quarta-série, num tempo em que se comemorava até a formatura do jardim de infância. eu girava nos pilares da varanda e jurava nunca me envergonhar do que eu era aos onze anos (deus, me pergunto todo dia, como pude adivinhar tão cedo? como pude?)

na casa ao lado um pai, uma mãe e um cachorro cuidavam de conduzir o protocolo da família feliz e dos três filhos bem sucedidos (certa vez ela me disse - você pensa que não mas todo mundo é castrado, a todos faltam algo - então porque a minha falta parecia cortar mais?)

vergonha e raiva, vergonha e raiva, cada uma segurando uma mão, me empurrando numa bicicleta com rodinhas - até acionar a máquina por dentro - que coisa maravilhosa esse carnaval do desejo - desatar o nó na garganta que a obrigação de ser completa, bonita, sábia e santa plantou em mim.



sexta-feira, 1 de setembro de 2017

mastigando as migalhas dos dias

por que ama as coisas desse mundo
ela lava e passa uma infinidades de
calças e camisas e vestidos e 
sacode obsessiva o pó da casa


espera pelo sussurro que, como 
nos primeiros tempos, irá a seduzir 
e possuir e desesperada perde a voz 
e chora equívoca diante do bibelô 
quebrado

a voz retorna em forma de um grito 
desesperado na madrugada um 
bramido de gjallarhorn e ela 
o silencia pintando e repintando 
as paredes de branco vivo em 
solidariedade a assepsia que  
a família tanto ama

ele ergue os pés ante o aspirador
escreve poemas e espera que 
amanhã ela esteja menos atarefada
menos cansada para o servir

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

paixão arbitrária


trançam meus cabelos, me pintam
retiram meus anéis para brincar com
eles por cinquenta minutos e tentam
fugir da ordem das filas
intermináveis

almoço repetição mochilas escovação

se batem, se ajudam, se tocam como irmãos
e irmãs e isso é de uma beleza indizível 

já sei a resposta para a pergunta que fazia
quando enlouqueci pela primeira vez
quando me perguntava como suportavam
o trabalho os caixas de supermercado

uma porção de raiva pra nos trazer alegria

trago um poema
entalado na garganta
um poema que luta
pra ser paz
e revolução
um poema que grita
deixem em paz
o corpo das mulheres

ele olha para fora
e não quer sair
o poema entalado
na garganta quer dizer
já acabou
mas te amo
como Gil
amava Drão

um poema
entalado na garganta
não é uma boa companhia
para se levar a passear
por aí



segunda-feira, 28 de agosto de 2017

instantâneo

quase meio século para
entender que apesar da força
salto e voo são a mesma coisa

entendo seu medo
quatro mil terminações

nervosas a mais
um corpo de onde tudo
nasce e tudo morre
parece mesmo assustador
sombras me alheiam
mas não me tomam
estou perdida
não sei onde estou

não sei onde vou
mas faz um click surdo quando
desligo a tristeza por dentro

Against Therapy Adán Méndez

Recordo que Anna Freud contava
o estranho que era Ferenczi,
um diálogo, sobretudo,
que se fez inolvidável.
—Uma hora, não sei
me está parecendo um prazo muito forçado
estou lhes dando mais tempo
deveríamos dar-lhes todo o tempo que quisessem.
—Mas se um paciente quer toda a tarde?
E os que esperam lá fora?
Aí Ferenczi ficou pensando
um momento ficou pensando
e afinal me disse:
—Talvez devêssemos ter um único paciente.
Anna Freud seguramente não soube
(o diário se publicou 50 anos depois)
mas Ferenczi naquele dia, ou no seguinte,
fez umas anotações a respeito.
Necessito do efeito sedante do amor
pelo menos tanto como meus pacientes.
Eu também necessito ser o paciente único de alguém.
http://www.antoniomiranda.com.br/Iberoamerica/chile/adan_mendez.html

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

acontecimento

congelo um evento 
em vermelho
vivo onde o amor
é uma experiência 
feliz e pergunto
gosta de maçã?
se me acha real
pinte-me de rosa 
pink em sua
lembrança, jogue
a chave fora deste
momento, certo é só
um modo de dizer
algemas e armaduras
acredito em mágica
adivinho sua risada
mudar para sempre
é só o que se pode ter

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

à praça da estação

deveria ser grande coisa dizer 
cheguei até aqui
não fosse esse preto
testemunhando o luto

é tão embaraçoso
estar sempre aprisionada
em sonhos de amor

socorro primavera
te quero inteira
em vestes sumárias
na praia da estação

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

advento

[norma de souza lopes]

pode ler as linhas 
da palma de minhas mãos?
um mapa do sítio onde
se possa existir longe dos medos
e capturas tão comuns às
pseudo histórias de amor

quem era você quando 
o homem pisava a lua?
fosse nascida estaria pronta
a admirar seu sorriso pueril
e dizer amo o que a sua trilha 
sonora me diz de você


é de um mal gosto agudo um eclipse
cuja visão não reconcilie nossa distância
principalmente agora que tomei
de suas mãos em concha, um amor
doce como fruta

Canção de amor para tempos difíceis María Elena Cruz Varela Tradução de Norma de Souza Lopes

Difícil escrever te quero com loucura.
Até a medula. Que será de minhas mãos
se lhes roubam a magia sonora do corpo?
Difícil. Muito difícil um poema de amor neste tempos.
Acontece que tu está. Feroz em tua evidência.
Acontece que estou. Contrafeita. À espreita.
E acontece que estamos.
A lei da gravidade não nos perdoa.
Difícil é dizer te quero neste tempos.
Te quero com urgência.
Quero fazer um aparte. Sem dúvidas e sem armadilhas.
Para dizer te quero. Assim. Simplesmente.
E que teu amor me salva do uivo noturno
quando a loba demente da febre me arrebata.
Não quero que me doa a falta de ternura.
Mas amor. Que difícil é escrever que te quero.
Assim. Entre tanto cinza. Tanta moléstia junta.
Como posso aspirar a transparência.
Retomar esta voz tão desgastada.
Esta costume antigo para dizer te quero.
Assim. Simplesmente. Antigamente. Digo.
Se todo é tão difícil. Se tudo dói tanto.
Se um homem. E outro homem. E logo outro. E outro.
Destroçam os espaços onde se guarda o amor.
Si não fosse difícil. Difícil e tremendo.
Se não fosse impossível esquecer essa raiva.
Meu relógio. Seu tic- tac. A rota para o cadafalso.
Minha sentença ridícula com esta corda falsa.
Seu não fosse difícil. Difícil e tremendo.
Plasmaria  este verso com sua cadência tosca.
Se fosse tão simples escrever que te amo.

sábado, 19 de agosto de 2017

agosto

de mãos dadas com o poder, o amor 
é a véspera da melancolia
talvez seja este, agosto
o seu papel, ser 
pastor de distanciamentos
artesão do vazio
para o que virá a ser

(mas está tão feio o terreiro
depois dessa poda
do cosme amarelo)

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Tem nove anos. Chegou com uma meia dúzia de pedras na sala e distribuiu entre as colegas:
_ Um presente para você, você e você... Sorri feliz com seu feito.
Uma colega pega o presente, observa e lança pela janela.
Ela chora de soluçar:
_ Jogou... fora... o meu... presente...
A professora indaga:
_ Porque você jogou fora?
_ Professora, ela colocou um chicletes mastigado e duro aqui na minha mesa.
_ Era uma pedra... Um presente..
_ Porque fez isso, não se joga fora um presente. Não precisa chorar, vá lá lavar seu rosto.
E observa a menina procurar o chicletes caído do lado de fora da janela...

(e eu pensando em quanto isso se parece com fazer poesia)

Vim para perder - Dianan Moncada - Tradução Norma de Souza Lopes

Volto sobre a mesma fenda como uma máquina deteriorada.
Volto sobre o mesmo erro,
sobre a mesma caça de brancos espelhos.

Volto, mesmo sabendo que a palavra me é sensualmente inútil,
mesmo sabendo que não darei nunca com nenhum maldito prego
sabendo que nada poderei dizer
sobre os lobos afogados na carniça do meu tédio.

Vim com o poema
-cegamente-
para perder.


daqui ó http://www.lamajadesnuda.com/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=1167:diana-moncada&catid=60:poetas-de-caracas&Itemid=168

domingo, 13 de agosto de 2017

crônica de um evento noturno

cinco minutos depois que saímos
eles entraram, roubaram e atiraram
é estranho pensar que
enquanto eu, meio alta
fotografava nós dois
pelas ruas do bairro
alguém quase foi morto
crueldade e principalmente
raiva de quem não
aceita a impotência
péssimo encontro
e a gente brincando
de novo de se amar
cabe tudo isso no mundo
não que eu não tenha raiva
é que converso com ela
entendo até aquela raiva das
manas nos saraus
ela vem desde a mil avó
escutar em silêncio
é o caminho
acolher até dissipar
a tristeza de agosto
não foi bela
uma radiografia
mostra-a tão feia
quanto o corpo
depois do amor
e das orações
vaidade demais, eles dizem
toda essa exposição
mas a luz às vezes
sai dos seus olhos
de quem vê
como na olympia de manet
eu sei, sou escrava
e cúmplice de minhas paixões
mas no meu desejo
me reinvento
não sou signo
sou acontecimento
é estranho pensar
que nós saímos
cinco minutos antes

terça-feira, 8 de agosto de 2017

ternuras inventadas

não entendi nada
daquele sonho
dos armários abertos
no consultório

"me desculpe outra vez"
você disse
e dormiu satisfeito
a noite inteira
com sua justiça
ok,  tenho todo amor que preciso
sem fazer meu mundo ruir

quero desistir
mas ajudava
se você fizesse
aquelas coisas idiotas
que todos fazem
no primeiro encontro

derreter satélites
é a metáfora mais bonita
para uma fantasia

desolação

não parece certo
tanta força
é tão pouca sorte
isso não é um poema
é uma oração

domingo, 6 de agosto de 2017

8029 dias

recusa brincar com abismos
ignora o por-do-sol 
insiste em minhas ruínas
se encanta com a teimosia de um
dos bicos de meus seios
tão simples como a água 
e a sede, seu lugar 
é dentro de mim


alegoria

demora semanas, meses até
quis um acontecimento
para eu colocar nesse poema
que funcionasse como
um enigma
da alegria do encontro
mas não me lembro
de nada singular
só da gente brigar
o tempo todo e daquele
grafitti que provavelmente
você nem vê
da sua janela

anunciação

entrando o anjo disse-me
alegra-te cheia de graça
eis que conceberá
é dará luz à poesia
(e no meu ouvido segredou
serás a invenção de si,
só de si e de mais ninguém)
então respondi
que a poesia
faça de mim a sua serva
e que eu seja
a mais bela invenção
e o anjo retirou-se

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

que não amava ninguém

é nos sonhos em que podemos voar
que percebemos a fábula
e não queremos acordar

ei, sei que estou perdida
mas ouça, eu estou bem
o choro em posição fetal
só dura até ano que vem

todo mundo finge que é
o centro do universo
comigo não seria diferente
ser a primeira
na quadrilha de alguém
vai ter que ser suficiente

segunda-feira, 31 de julho de 2017

replay

gosto de não trabalhar no centro
isso faz com que a cidade se torne especial
é manhã de segunda do último dia do mês de julho
aqui nesta fronteira do mundo
carteiros e coletivos estão no horário
torço pela volta dos dias de verão no chafariz
da Praça da Estação, onde até os sem-teto são literários
nesses dias líquidos, cheios de jogos e de imagens
trabalhadas, encontros analógicos são a melhor experiência
você fica sempre tão bonita vestida para sair
virava fácil um graffiti dos gêmeos
o silêncio sempre me pareceu algo bem desafiador

talvez por permitir qualquer palavra no seu oco
talvez por eu nunca ser capaz de me calar
há um rumor do que você não diz
que conversa com essa mulher estranha
e selvagem que eu sufoco em mim
pouca gente sabe, mas depois de Ten
Eddie Vedder nunca mais foi frentista
saber se rasgar às vezes nos tira do lugar
mas já entendi que você não vem
o que me transforma nesse replay
infinito dos últimos verso de Black



Dois poemas de Sam Shepard - Tradução Norma de Souza Lopes

Desde a grama alta
até borda do pátio asfaltado
te vejo me esquadrinhar


te vejo quando não sabes que miro
e cada mirada que roubo
adiciona um dia a minha vida

ultimamente está mais difícil de te capturar
ou estou ficando velho
ultimamente está mais difícil de te capturar


********
Já vi praticamente
todos os narizes arrumados
todos os dentes clareados

e todas as tetas remoçadas
que posso suportar

Vou regressar
à mulher natural


 daqui ó http://emmagunst.blogspot.com.br/2010/05/cronicas-de-motel-2.html 

sábado, 29 de julho de 2017

tão potente quanto suas mãos

o que parece ser a sua beleza
esteve sempre depositada
em minhas retinas e as meninas
dos meus olhos são volúveis
podem amar milhões
tivesse sido atento
teria entendido meu fetiche
por suas mãos
agora não importa mais
antes de desistir preciso dizer
porque não aceito tão pouco
pontes são melhores
que escadas, pseudoencontros
consistência fluida
me fazem esquecer
que a minha história
é mais bonita
que a do Robinson Crusoé
sei que é o clichê
mas quem perde é você
meu veneno mais doce
será te olhar e te ver
tão desimportante
quanto verdadeiramente é
não raro um poema
assassina projetos de amor
ouça os gritos
este ordena
PARE DE SE RASGAR
não é de hoje que costuro
as recusas com palavras




quarta-feira, 26 de julho de 2017

A verdade sobre a poesia que ninguém contou

Tive dias em que um arco-íris
era apenas refração da luz solar em gotas d'água
que o som dos pássaros só comunicava sua fome
que um náufrago era aquele obrigado a continuar vivo

Eu pensava que não existia poesia.