domingo, 30 de outubro de 2016

koi no yokan

os pés lastimam 
ter que caminhar
pelas ruas sujas
até a escolha
entre o ruim e pior
domingo de eleição

lagartos se escondem 
entre as heras do muro
há sentimentos 
entalados na garganta
é preciso mimá-los 
para que não saltem

lembro aquela polaroide 
pose de cabeça tombada
a alma feridade de quem 
não sabia escolher
não, nunca mais 
será assim

um amor canta
em meus sonhos
ao som das cordas 
fá, sol, fá, mi, lá
e eu faço dançar
a bailarina que mora 
em meu coração

quase impossível 
encontrar o caos
e não amá-lo
teria que dizer
em japonês
koi no yokan

a batuta da paixão 
orquestra as teclas
e os pés lastimam
mais uma vez
ter que caminhar
pelas ruas sujas
o lagarto escondido 
entre as heras 
do muro 
sou eu





sábado, 29 de outubro de 2016

Você é meu slow motion

Você não sabe, mas todo dia tenho que responder à pergunta:
_ Seu marido não liga por você ser assim?
Te respeito o suficiente para não sair por aí nomeando seus sentimentos.
_ Não sei.
Mas a recorrência da pergunta me faz pensar no que esperam de mulheres e maridos por aí. São tempos difíceis, em que as posses não negociadas estragam os relacionamentos. E, assim como os liquidificadores, não se consertam mais os relacionamentos estragados. São jogados no lixo.
A gente segue consertando, consertando... Suspirando o medo de que um dia não funcione mais.
Quem nos conhece sabe o quanto somos diferentes e o quanto nos esforçamos para diminuir as distâncias entre nós. Não é fácil. O pedreiro e a poeta.

"você
voz de cabeça
marreta
eu 
voz de falsete
poeta [...]"

Do lado de fora eu me realizo, danço esta dança solo chamada poesia. Aconteço, agito e sou livre como só com você eu poderia ser. Exerço minhas paixões no âmbito das palavras e minha intensidade no âmbito do corpo. Você por sua vez segue no seu vagar, assoviando enquanto aumenta a casa, melhora a casa, enfeita a casa. Eu vibro em outra velocidade. Corro intensamente aqui fora mas sempre volto para dentro. Me obrigo a desacelerar, desacelerar, desacelerar até parar e desfrutar. Você é o meu slow motion e é uma alegria que seja assim.
É o que nós ganhamos pelos quase vinte anos de monogamia escolhida. Quem me pergunta se você não liga talvez esperasse outra relação, menos diferenças. Mas as potências se realizam é na diversidade. 
Talvez você ligue. Mas sei que nunca iria me dizer. E dessa qualidade o seu amor. E eu sei que, se estou tão feliz com o que me tornei, devo em parte a você. Ainda sinto suas mãos em minhas costas, exatamente como elas estavam quando eu, soterrada pelo lixo que a vida me fez comer, não conseguia me mover.
Se isso não for amor, eu não sei o que é. 

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

um poema interminável

e há os dias em que a gente deseja
escrever um poema nu
como aquelas músicas instrumentais
que as rádios tocavam ao meio-dia
um poema sonoro como o clac clec
das pedras guardadas no bolso
para o mergulho de emergência
um poema que parisse esquecimentos

mas não há palavras que possam alvejar 
as nódoas do coração
tampouco posso dispersar
os cães sem dono no portão
no fim a gente se acostuma
a caminhar por essa rua sem nome
os números fora de ordem, a vida
já seria bom se eu estiver presente
no meu próximo aniversário

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

a memória das coisas

tento não sucumbir à tristeza
tal qual aquele traje floral 
esquecido no cabide 
desde o dia do nosso primeiro abraço
as coisa não tem pretensão nenhuma
mas nunca perdem a memória do que viveram

tento não sucumbir
e abraço feito louca aquela veste
bailo pelo quarto em seus braços delgados
só nós duas compreendemos 
a incalculável saudade do que não foi 


quarta-feira, 19 de outubro de 2016

esperaria muitas vidas por você

entoo uma canção nupcial inteira
em minha língua materna
e espero que ouça
a doze quilômetros daqui

posso imaginar
a tempestade de roupas
espalhadas pelo chão
depois do nosso encontro

a ternura amassada do lençóis
que eu afasto
para admirar a pintura
do tempo sobre sua pele

e só porque te amo
digo a palavra plátano
a palavra estrela, sal
e ainda assim estarei dizendo
meu amor, meu amor



terça-feira, 4 de outubro de 2016

Cântico


Eu sou do meu amado
E ele é meu
Uma gazela aprisionada
Um cervo perdido no prado
Eu sou do meu amado
E ele é meu

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

joaquim

depois o almoço
balanço para trás a cadeira
sonolenta

os dedinhos do meu neto
deslizam sobre meu rosto
playground de dobras e rugas


explora meus dentes
puxa meus cabelos
finjo morder-lhe a mão
e sondo meus medos

quem me dera um mundo

pacífico e cheio de brilho 
quanto seus olhos