domingo, 3 de novembro de 2019

Há uma lenda chinesa bastante difundida no Japão que indica que duas pessoas estão ligadas pelo fio vermelho do destino, o akai ito (赤い糸). 
Criado pelo deus lunar Yuè Xià Lǎorén, esse fio invisível seria amarrado aos tornozelos (China), ao mindinho (Japão) ou ao pulso (Índia) daqueles que estão predestinados a serem almas gêmeas.
Por motivos bem particulares amo essa lenda mas entendo se caráter pretensioso. Em tempos líquidos a ideia de alma gêmea é, no mínimo, ingenua. Nós mal somos capazes de encontrar a nós mesmos. Vivemos momentos sombrios em que tudo nos parte, tudo nos fragmenta, tudo nos despedaça. Por isso eu gosto de pensar que as possibilidades fantástica deste fio poderiam ser usadas como algo que nos amarrasse, que costurasse nossa alma despedaçada e nos constituísse inteiros. Uma vez inteiros, poderíamos caminhar em direção ao outro, num novo tipo de encontro. 
Valter Hugo Mãe, em seu " O filho de mil homens" descreve com profunda poesia, o que para mim, seria a forma ideal desse outro tipo de encontro: 

               " Subitamente, o rapaz disse que o pai precisava de encontrar uma mulher. O Crisóstomo ficou surpreso, não lhe ocorria preocupar-se mais com essas coisas, estava feliz. Mas o rapaz insistiu. Ia crescer e namorar, talvez casasse, e ao pai ficaria a faltar-lhe algo.
             O Crisóstomo respondeu que não lhe faltava nada, estava inteiro. E o rapaz pequeno disse-lhe que então ele devia passar a ser o dobro. Ser o dobro, disse. O pescador abraçou-o de encontro ao peito. Era o seu filho génio, o que sabia matemática e que sabia fazer caldo verde e domesticar os cães como ninguém. Era o seu filho génio, com as palavras que lhe faltavam, talvez com a coragem que lhe faltava. E o homem sorriu. O pescador sorriu, acabando de redobrar a esperança e julgando que outra vez poderia arriscar o amor.
                À noite, sozinho diante da sua casa, o mar todo apaixonado por si, o homem que chegou aos quarenta anos sentou-se novamente diante da inteligência toda da natureza. Estava ainda de coração partido, porque falhara nos amores e os amores podiam ser tão complicados, mas havia ficado mais forte, agora.
                Quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz.
                O pescador pensou.
                E disse à natureza que queria encontrar uma mulher simples, uma que gostasse de viver numa casa pobre com um pescador humilde que tem um filho que é um génio. Um pescador que, por loucura ou ingenuidade, fala baixinho com a areia. Para ser o dobro e em dobro ter o que fazer da vida e ter o que deixar ao filho.
                No dia seguinte, quando acordava para preparar o pequeno-almoço e mandar o rapaz pequeno à escola, o Crisóstomo viu pela janela da cozinha uma mulher sozinha, sentada com exactidão no lugar onde se sentara ele. A falar sem ninguém e para ninguém. Certamente ali só parcial. Uma mulher incompleta.
                Estava uma mulher a falar sozinha no seu lugar, na sua areia, diante do seu mar, numa brisa fresca que a manhã trazia, as cores ainda muito aguadas da timidez do sol e da limpidez da paisagem.
                O homem que chegou aos quarenta anos sorriu, e aquele sorriso já não era o mesmo do dia anterior. Já não era como nenhum outro do passado. Era o dobro de um sorriso.



Valter Hugo Mãe (2011). O filho de mil homens. Carnaxide: Alfaguara, pp. 25, 26.