quinta-feira, 5 de março de 2015

PUNHOS

Acordei cedo, “Hoje eu resolvo isso.” Os dedos correndo sobre o pequeno relevo ósseo na testa. Há quantos anos tinha sido? Oito? nove? Antes não era assim. Aquela seria a vida que eu sempre sonhei. Um homem forte, protetor. Nada que eu tive em família. “Nossa veja como a Olívia parece feliz!” “Que namorado lindo ela arrumou!” As invejosas ficaram se perguntando o que um homem tão bonito quisera com uma mulher fraca e insossa como eu.

“Hoje eu resolvo isso.” Mas não posso ir à polícia. “Não!” A polícia seria o fim, e isso eu não quero. No começo ele não era tão obtuso. Parecia querer ocupar com prazer o lugar de pai que eu havia lhe reservado. “Vou voltar naquela cartomante, pergunto o que devo fazer.” Ela errou afinal. Cadê a perfeita história de amor que ela me prenunciou há treze anos? “Quero meu dinheiro de volta” De que estou rindo. “Não, não quero nada de volta.” Não quero a vida que tive desde que nasci, quero outra. 

Antes as mãos dele corriam no meu rosto, da lateral dos olhos até o queixo. Era bom sentir esse carinho. Agora basta fechar os olhos para sentir os punhos explodindo sobre a minha cabeça. Aqui, atrás da orelha tem outra, se eu passar o dedo lentamente posso sentir os seis pontos. Tive que mentir no pronto socorro, dizer que era queda. Era queda afinal. Quem pode dizer que levar porrada não é queda? 

A cartomante me aconselhou escrever, aliviar a dor. Mas nem analgésico resolve isso. Eu ontem me senti linda com o vestido que minha mãe me deu. Ela estava certa afinal. Dizia que esse homem não prestava pra mim. No começo eu achava que ela estava dizendo o contrário. Que o problema estava em mim. O que ela viu que eu não vi? Café quente. Ele me arrancou da festa com meia hora, me trouxe pra casa e me mandou fazer café. Depois isso. Nem sei se consigo tirar as manchas. As queimaduras eu terei que esconder um mês. “Estou tão cansada de esconder minhas feridas.”

Todo dia ele assiste o noticiário. “O que será que pensa quando vê esses homens sendo julgados?” Acho que ele nem pensa. Tanta mulher morta. Legitima defesa. O cara tem o dobro do tamanho e o desgraçado alega legitima defesa. No começo eu tentava lutar, braços pernas, uma confusão. Com o tempo fui percebendo que se eu ficasse quieta podia durar menos. E ainda tinha a sensação de que eu é que tinha provocado. E provocava mesmo. No final de terceiro ano de casamento ele começou a escancarar. Chegava tarde, cheiro de mulher, batom, essas coisas. Eu perguntava e ele ria. Eu gritava. Quem não gritaria? No dia do churrasco de aniversário ele trouxe uma delas. Disse que era amiga. Fiz vista grossa. A casa cheia de gente. Até que flagrei os dois se pegando na cozinha. Fiquei olhando de longe, esperando todo mundo ir embora. Depois gritei, xinguei, chorei, esmurrei o peito dele. Foi a primeira. O olho ficou tão roxo que eu só saia de óculos escuro. Uma vizinha viu, mas acho que preferiu não se meter. 

No começo ele me chamava de princesa, levava para sair, resolvia meus problemas com minha família. Mesmo aqui em casa, era um doce. Preparava jantar romântico, contava sobre o trabalho. Parecia mesmo que eu ia ser feliz. Tanta guerra com meu pai e meus irmãos. A minha mãe sempre calada, deixando eles me aprisionarem, me fazerem de escrava em casa. E os espancamentos? Acho que eu tenho um imã. “Oh meu Deus, será que eu vim ao mundo só para apanhar?”

Voltei na cartomante. Dessa vez ela me mandou ir á policia. Já fui uma vez, mas ele não sabe. O policial perguntou o que eu tinha feito. “O que eu fiz?” Acho que é o que tudo mundo pensa. Quem apanha, apanha por que merece. Desisti de policia desde então. Mas está ficando difícil. Ele pode tudo. Sai com mulher, chega tarde. Me humilha com isso. Eu resolvo ir ao cinema sozinha e ele me bate de novo. “E tem que ser sozinha mesmo, né?” Ele foi proibindo a presença das minhas amigas, da minha mãe, acabou não ficando nenhuma companhia. 

Fico olhando essas mulheres da vizinhança. Como será não apanhar? Elas parecem tão fortes, tão bonitas, tão altivas. Eu olho no espelho e me vejo tão feita, encurvada, sombria. Levar porrada faz isso com a gente. A vizinha do lado está grávida de três meses. De vez enquanto eles brigam. Dinheiro, eu acho. Mas dura pouco. Eles sempre conversam no final.

Ele agora deu para atirar as coisas em mim. De longe, mesmo. Eu já sei quando ele está violento. Ele chega com um jeito estranho de respirar, meio duro, afobado. Nesses dias eu invento coisas para ficar longe. Daí ele passou a atirar coisas. Primeiro foi o controle da TV. Nem deu marca. Depois foi o prato de comida. Não acertou. Hoje estou com a batata da perna cortada porque ele atirou um castiçal em mim. O maldito tinha uma ponta para prender a vela e rasgou minha perna. 

Fico olhando ele dormir e pensando. “E se eu o sufocasse dormindo?” Nem pensar. Estou fora. Acho que eu não teria força para segurar nem um minuto. Se eu fosse fazer isso precisaria de ajuda. Não conheço ninguém que pudesse me ajudar com isso. Nem consigo achar ele bonito mais. O queijo quadrado, os pelos sobre a mão. Olho isso e só lembro da cara travada que ele faz quando me bate.

Ele fez de novo. Armou um circo para o meu aniversário. Chamou todo mundo. Os descarados dos amigos de farra vieram me trazer presentes. Devem me olhar e pensar em como posso ser tão idiota. Quase posso ouvir ele contando na roda. “Eu chego em casa ás quatro e ela me faz um cafezinho.” As risadas ecoam no meu ouvido. Lá pelas dez a gostosona chegou. Se apresentou como Shirley. Só pelo olhar que os dois trocaram eu soube que tinha trazido vagabunda para casa de novo. “Não vou fazer parte dessa merda!” 

Não adiantou. Depois de todos foram embora ele me arrancou da cama a força dizendo que destratei os amigos. Hoje é dia de lamber ferida. O médico engessou enfaixou a costela quebrada, mas está há meia hora me fazendo perguntas. Não adianta. O roxo no olho denuncia. Vou dar um chega pra lá nele. Quero ir embora. Estou cansada. 

Preciso pensar em um jeito de acabar com isso. Estou assustada com a raiva que eu sinto de mim mesma por continuar nessa história. Isso de polícia eu sei que é bobagem. O cemitério está cheio de mulheres que tentaram sair. É isso que ele diz. Quando me achar me mata. Preciso dar um jeito. 

Lá fora escuto a sirene da policia. “Quem chamou?” Sei não. Estou aqui tentando me lembrar. Deu um branco. Sei que ele chegou daquele jeito, bufando. Comeu e sentou no sofá. De lá gritou por causa dos pelos do cachorro na almofada. Atendeu ao telefone e ficou conversando pornografia com a tal da Shirley. Depois gritou de novo por causa da água nas plantas, a dengue, essas coisas. Lá da cozinha eu via o sofá e a cabeça dele como se fosse um grande corpo. A sala na penumbra, só com o brilho da TV. Eu guardando as vasilhas da janta, o batedor de bife na mão. “Quantas batidas eu teria que dar para ele não se levantar mais?” Teria que ser uma, bem forte. Mirei de longe a cabeça, forcei os braços. Nesses anos eu havia aprendido a caminhar silenciosamente. Pé de pano, ele dizia com raiva. Ele nem viu que eu estava atrás. Levantei o braço alto e pus nele a raiva de nove anos de violência. O crânio abriu-se como uma flor. O “crack” dos ossos fez minha vagina contrair excitada. Bati novamente. Agora a orelha ficou desfigurada. Ele tombou um pouco e eu pude ver seus olhos de desespero. Não consegui parar. Ergui e desci o braço compulsivamente. E o a única coisa que me incomodava era um pensamento estranho. “O sofá vai ficar irrecuperável.”

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