sábado, 10 de agosto de 2013

Li isso pela primeira vez antes dos vinte. Me tocou como toca hoje. Me faz pensar em como é covarde ser a professora na fronteira oco do mundo e quer ensinar a meninos pobres e neguinhos a serem "homens de bem", "homens da paz". 
 
 
         FRAGMENTO

Joílson nasceu pobre.

Quer fazer o favoir de ler de novo?

Joílson de Jesus nasceu pobre.

É possível isto? Alguém já nascer pobre? É! Isto quer dizer que Joílson nasceu marcado feito gado para o resto da vida: POBRE. Isto quer dizer que, apesar de não ter cometido nenhum crime anterior, Joílson nasceu condenado. Sem direito a sursis. Isto quer dizer que, em veza de leite, beberia água de esgoto; no lugar de escola, freqüentaria as academias da FEBEM. Em lugar de cobertor, dormiria coberto pelo estigma da cor. Joílson era negrinho.

Pobre e negrinho. Quer dizer que, quando o Natal chegasse, Joílson teria que fechar os olhos e ouvidos à orgia de anúncios de maravilhosos brinquedos, gostosos panetones, luxuosas roupas e fantásticos jogos eletrônicos. E as mulheres deliciosas, cheirosas e belas que também se anunciavam? Quer dizer que Joílson, no Natal, teria que virar também um eunuco.

Pobre, negrinho e eunuco.

Aos 15 anos, Joílson sabia que teria a mesma sina do seu bisavô, do seu avô, do seu pai, do seu neto e do seu bisneto: trabalharia dezoito horas por dia para nada. E resolveu a exemplo do que se via nos altos escalões, arrancar correntes de ouro do pescoço dos outros. Agora, deve ter pensado, terei videogames, apnetones, contas na Suíça. Abrirei uma financeira e, quem sabe, serei até um presidenciável. Joílson se esqueceu que seu crachá era de pobre, negrinho e eunuco.

Foi agarrado por um procurador do Estado e pisoteado pelo esquadrão de locutores de rádio até soltar pela boca um líquido verde. Não, não vomitou, porque nada tinha no estômago. O verde era da bílis. E, pela madrugada AM, ouviram-se os urros de triunfo dos Tarzans do rádio: - Ao ter sua espinha partida, o canalha, o safado, o pivete, o trombadinha, o bandido urinou nas calças!

Joílson morreu como nasceu: pobre. Mas seus filhos e netos e bisnetos escaparam de sua sina, simplesmente porque não vão nascer.

Mas o esquadrão da notícia, em texto plantado num jornal colarinho-branco, continua soltando sua bílis. Quer agora linchar a Igreja por terem seus bispos rezando por Joílson. E a Talita? E o bebê assassinado por um desses Joílsons? Parecem querer dizer: olho por olho.

1 x 1!

Ah! Então é jogo? Luta de classes?

Se é guerra, é guerra. Porque morrem mil crianças de subnutrição por dia no Brasil. E em 84 morrerão 3 milhões de Joílsons só no Nordeste. Assim procuradores do Estado e esquadrões do rádio e do papel anotem o placar correto:

3 milhões x 1!

E vão-se os pescoços, ficam os cordões de ouro.

- Henfil, "Diretas Já!", 1984

[FOTOGRAFIA: Ensaio "Pele Preta", de Maurren Bisilliat, 1966]

Nenhum comentário:

Postar um comentário