sábado, 15 de janeiro de 2011

LUDÍBRIO




Existe um tipo de leitor quer ser enganado. Ele quer viajar nas escrituras, quer mergulhar no conto. Quer ser levado pela mão do narrador como alguém que flutua enquanto dorme e é conduzido. Mas ele não quer ver o condutor. Não quer tomar conhecimento daquele alguém por trás do narrador, que deliberadamente o conduz. Quer crer que não dorme, que vive o conto. É real. Ele é o proprietário dessa realidade.

Quero conquistar esse tipo de leitor. Por isso quero escrever contos em que o leitor se distraia. Não saiba que está sendo conduzido. Existem formas para isso. Quero conhecê-las bem.

Pensei em uma delas hoje.

Descreva um objeto  em um lugar qualquer...

Dentro dessa caixa de relógio exerço meu papel. Pendurado na parede, eu observo a família  à quatro gerações. Vi aquela senhoras nos cueiros, ainda meninas, moças até. Pude vê-las envergar sob o peso dos anos. Vi quem veio antes delas.


Conte a história desse objeto...


Me lembro mesmo da ocasião em que fui  construído artesanalmente na gelada  Alemanha. A neve impedia meu construtor de sair de casa. Por seis meses ele trabalhou em mim, um pequeno cuco de carvalho. Modelou também a caixa e as molduras. Uma linda cena de homens bebendo cerveja em uma taberna.

Nesse ponto o leitor já deveria estar pregado na parede, observando as velhas senhoras tomando chá e pensando como um cuco de um relógio. Mas ainda falta as sutilezas, as artimanhas que fazem com que o espírito do leitor se solte. Falta as palavras imaginativas que faça com que ele, curioso, espie como que pelo buraco de um fechadura...


Aquela, de cabelos grisalhos,  sentada quase à ponta da poltrona, como se quisesse fugir a qualquer momento, eu conheço sua história. Não se  casou. Não que não quisesse. Ela quis vigorosamente. Mas o amado estava à margem dos poderes da família. Era um jardineiro. Era o jardineiro...


A esse ponto posso ter atraído o interesse do leitor. Ele quer se aproximar, chegar mais perto dessa cinquentenária. Quais forças usaram para fazê-la desistir de seu jardineiro. O que fez com que ela amasse o artesão de jardins?
Mas ele desperta. Mais uma história de amor entre classes. De que vale ler algo que já conhecemos de longa data? E de quebra anunciei que o romance não teve sucesso. 


Voltemos para o cuco...


Conheço a natureza de sua dores porque sou seu confidente. Vocês podem rir. Como assim, ela faz confidência a um cuco de carvalho?   Sim ela faz. E não é nada fácil ser confidente. Nem todos que passaram por mim foram meus confidentes. Só se abre para a confidência aqueles que demonstram firmeza de caráter. E assim é um cuco. 


Pôde ver? aqui o cuco conversa com o leitor, responde às suas perguntas...




Tenho sido muito firme nesses cento e cinqüenta anos de trabalho. Apenas uma vez deixei de anunciar as horas certas. Não que por minha culpa, há que se dizer, mas por culpa dos carrilhões de bronze. Pararam de  girar. Me confundiram. Fora isso sempre fui o mesmo. Um cuco digno das confidência de uma donzela apaixonada.


Então o leitor se convence.  O narrador ganhou sua confiança. Muito digno esse cuco. O leitor está atento, ouvindo a voz de taquara rachada do cuco. Quer saber mais. Agora, na voz do cuco, poderei contar a bela história da mocinha rica que não se casou por ter se apaixonado pelo jardineiro. Não sou mais a escritora intrusa.


Gotcha!
E eu estou aqui!

Norma de Souza Lopes

Nenhum comentário:

Postar um comentário