segunda-feira, 30 de agosto de 2010


Para uma Menina com uma Flor
Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.

E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras.
E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte 
eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.

E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta e não concorda porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando. 
E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.

E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.

E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa.

E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.
Vinicius de Morais

sábado, 28 de agosto de 2010

Platônico


Sua voz exala adolescência
e o som excita meus neurônios.
Mas não me toque, não se aproxime,
meu amor não espera matrimônios.


Amo tanto o meu amor
quero sorvê-lo como absinto.
Prefiro te amar a distância
então não macule  o que sinto.


Sei que meu amor não resiste
a dor de suas imperfeições.
Prefiro desfrutar o sonho 
que o fatídico partir de corações.


Norma de Souza Lopes

Materialismo

De que vale, da vida, o escrutínio?
Não há força do pensamento 
que resista a uma pancada no crânio.


Norma de Souza Lopes
Antialtruísta


Algo que não processo:
há pessoas que não são felizes conosco. 
Só gozam o próprio sucesso.


Norma de Souza Lopes


Do lado de cá do espelho


Recuo ante minha mãe no espelho
vê-la em mim me apavora
o timbre de voz nauseante
a semelhança que devora
reflete ela em mim, mutante.


E o que faço comigo?
Me divorcio do medo
não quero mais temer o não.
Tenho dormido com a dúvida
troco  certeza por senão.

Assino  alforria psicológica
não serei carona de ninguém
me aceito imperfeita agora
expelida a mãe que me controla
comprometo com o que me convém.


Norma de Souza Lopes
Liame


Verdade sem enganos
Nas tênues  veias do vínculo 
Corre o sangue que nos faz humanos.


Norma de Souza Lopes
Déjà vu


Às vezes me ocorre a sensação
de viver histórias repetidas
antepassadas vidas preexistidas.


Me recuso a vivê-la
quero ser única e inédita
como inédita é a vida.


Norma de Souza Lopes

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Individício

Não dividirei com pessimistas
minha paixão pelo  ótimo
meu prazer com o belo
meu amor ao vínculo
minha gana pela vida:
dar o que tenho
me faria endividada 
e seria desperdício.

Norma de Souza Lopes
Sanha


Se te capto
te levo às alturas
te toco as entranhas
te sorvo aberturas


Se te pego
engulo em grandes goles
embaraço seus cabelos
roço pêlos


Se te agarro
arranho sua pele
te pego num sarro
te saro com gozo


Se te ganho
saio do sonho
me recomponho
e te esqueço


Norma de Souza Lopes

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Vestido Lido




Aprendi a ler com Lili
e Cinderela.
Quis o azul 
e as flores do vestido dela.
A leitura veio 
como um vestido, lindo
seu corte, cor, forma, flor e babado
era a leitura:
pura, 
inteira, 
global.
E eu desejava. 
Queria o vestido,
ou tudo que o mundo lido me dava?


Norma de Souza Lopes

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Revoada


Como são parecidas
essas meninas
na porta da escola


Maquiagem
pulserinhas
franjinhas 


tão iguaizinhas
parecem passarinho


Norma de Souza Lopes

domingo, 15 de agosto de 2010

Equação


Com quem dividirei
a poesia que desabrochou em mim?


Um não a quer por vaidade,
outro não a quer por não me amar.
Há aquele que não a pode entender.


Poesia incógnita é de doer.


Norma de Souza Lopes

sábado, 14 de agosto de 2010


MENINA MORENA E ÁGIL


Menina morena e ágil, o sol que faz as frutas,
o que madura os trigos, o que retorce as algas,
faz teu corpo alegre, teus luminosos olhos
e tua boca que tem o sorriso da água.

Um sol negro e ansioso te enrola nas ervas
da negra melena, quando estiras os braços.
Tu brincas com o sol como com um arroio
e ele te deixa nos olhos dois escuros remansos.

menina morena e ágil, nada a ti me aproxima.
Tudo de ti me afasta, como do meio-dia.
És a delirante juventude da abelha,
a embriaguez da onda, a força da espiga.

Meu coração sombrio te procura, sem embargo,
e amo teu corpo alegre, tua voz solta e delgada.
Borboleta morena doce e definitiva
como o trigal e o sol, a papoula e a água.


Pablo Neruda
(Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada)
Recotiditando

A poesia emerge em mim
poetisa
do que anseia realizar-se
profetisa
no esforço de ser única
acabo óbvia
minha inspiração é a vida
e parir palavras minha sina
sigo
dizendo o dito 

Norma de Souza Lopes

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Memória

Quem irá me dizer
quando eu morrer?

não o dito traduzido
retido no saber de outro ser

Mais o dito sentido
que esteve em mim,  vivido

A real  poesia que mora mim
quem irá dizer quando eu morrer?

Norma de Souza Lopes
Desvendo-me


Apaixonada por palavras
nada vagas
navego poesia


Um tanto santa
tonta, vagabunda
no entanto, sem vendas




Norma de Souza Lopes

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Chorinho para a amiga


Se fosses louca por mim, ah eu dava pantana, eu corria na praça, eu te chamava para ver o afogado. Se fosses louca por mim, eu nem sei, eu subia na pedra mais alto, altivo e parado, vendo o mundo pousado a meus pés. Oh, por que não me dizes, morena, que és louca varrida por mim? Eu te conto um segredo, te levo à boate, eu dou vodca pra você beber! Teu amor é tão grande, parece um luar, mas lhe falta a loucura do meu. Olhos doces os teus, com esse olhar de você, mas por que tão distante de mim? Lindos braços e um colo macio, mas porque tão ausentes dos meus? Ah, se fosses louca por mim, eu comprava pipoca, saía correndo, de repente me punha a cantar. Dançaria convosco, senhora, um bailado nervoso e sutil. Se fosses louca por mim, eu me batia em duelo sorrindo, caía a fundo num golpe mortal. Estudava contigo o mistério dos astros, a geometria dos pássaros, declamando poemas assim: "Se eu morresse amanhã... Se fosses louca por mim... ". Se você fosse louca por mim, ô maninha, a gente ia ao Mercado, ao nascer da manhã, ia ver o avião levantar. Tanta coisa eu fazia, ó delícia, se fosses louca por mim! Olha aqui, por exemplo, eu pegava e comprava um lindo peignoir pra você. Te tirava da fila, te abrigava em chinchila, dava até um gasô pra você. Diz por que, meu anjinho, por que tu não és louca-louca por mim? Ai, meu Deus, como é triste viver nesta dura incerteza cruel! Perco a fome, não vou ao cinema, só de achar que não és louca por mim. (E no entanto direi num aparte que até gostas bastante de mim...). Mas não sei, eu queria sentir teu olhar fulgurar contra o meu. Mas não sei, eu queria te ver uma escrava morena de mim. Vamos ser, meu amor, vamos ser um do outro de um modo total? Vamos nós, meu carinho, viver num barraco, e um luar, um coqueiro e um violão? Vamos brincar no Carnaval, hein, neguinha, vanios andar atrás do batalhão? Vamos, amor, fazer miséria, espetar uma conta no bar? Você quer quer eu provoque uma briga pra você torcer muito por mim? Vamos subir no elevador, hein, doçura, nós dois juntos subindo, que bom! Vamos entrar numa casa de pasto, beber pinga e ceveja e xingar? Vamos, neguinha, vamos na praia passear? Vamos ver o dirigível, que é o assombro nacional? Vamos, maninha, vamos, na rua do Tampico, onde o pai matou a filha, ô maninha, com a tampa do maçarico? Vamos maninha, vamos morar em jurujuba, andar de barco a vela, ô maninha, comer camarão graúdo? Vem cá, meu bem, vem cá, meu bem, vem cá, vem cá, vem cá, se não vens bem depressinha, meu bem, vou contar para o seu pai. Ah, minha flor, que linda, a embriaguez do amor, dá um frio pela espinha, prenda minha, e em seguida dá calor. És tão linda, menina, se te chamasses Marina, eu te levava no banho de mar. És tão doce, beleza, se te chamasses Teresa, eu teria certeza, meu bem. Mas não tenho certeza de nada, ó desgraça, ó ruína, ó Tupá! Tu sabias que em ti tem taiti, linda ilha do amor e do adeus? tem mandinga, tem mascate, pão-de-açúcar com café, tem chimborazo, kamtchaka, tabor, popocatepel? tem juras, tem jetaturas e até danúbios azuis, tem igapós, jamundás, içás, tapajós, purus! – tens, tens, tens, ah se tens! tens, tens tens, ah se tens! Meu amor, meu amor, meu amor, que carinho tão bom por você, quantos beijos alados fugindo, quanto sangue no meu coração! Ah, se fosses louca por mim, eu me estirava na areia, ficava mirando as estrelas. Se fosses louca por mim, eu saía correndo de súbito, entre o pasmo da turba inconsútil. Eu dizia : Woe is me! Eu dizia: helàs! pra você… Tanta coisa eu diria que não há poesia de longe capaz de exprimir. Eu inventava linguagem, só falando bobagem, só fazia bobagem, meu bem. Ó fatal pentagrama, ó lomas valentinas, ó tetrarca, ó sevícia, ó letargo! Mas não há nada a fazer, meu destino é sofrer: e seria tão bom não sofrer. Porque toda a alegria tua e minha seria, se você fosse louca por mim… Mas você não é louca por mim... Mas você não é louca por mim...

Vinicius de Moraes