domingo, 31 de janeiro de 2016

da arte de cortar a dor com uma palavra

tem aquele mirante enquadrando as luzes da cidade numa quarta a noite onde nunca fomos
tem isso de eu ter desistido de fazer qualquer movimento eu sua direção para evitar a dor
tem aquele sorriso que eu amo mas que nunca consigo me lembrar exatamente como é
tem esse não, não, não repetido mil vezes ao dia para mudar o fluxo do pensamento
tem esse amor bovino à minha vida simples e confortável exatamente como ela é
tem a suas costas diminuindo, diminuindo, se afastando em direção ao nada
tem esse ter no lugar de haver como um esforço em materializar você
tem esses cinco  versos apagados para te esconder
tem o encontro feliz que nunca haverá de acontecer

NSL
31/01/15

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Na sala de espera, um paredão e lá em cima a farmácia. Aperta-se um botão, desce um cesta e nela depositamos RG e receita. Cerca de cinco minutos depois descem em pacotinhos pardos os medicamentos. Diferente dos outros com seus tiques de repetição ele abraça e beija a todos e em especial as mulheres. Para uma delas, cinquentona sorridente e sem dentes e pede em casamento afirmando que está a muito tempo solteiro e que precisa se casar.
Caminha entre os pacientes, sorri e ocasionalmente ora. Um paciente, que em outros dias pouco fala e pouco se movimenta, hoje repete compulsivamente:
_ Vou te mandar calar a boca (isso dito em voz baixa). Cala a bola!(gritando)
Nossa amigo emite uma oração das chamadas "em línguas",  um conjunto de silabas desconexas que entre os fiéis é tido como a presença do Espirito Santo. Essa emissão coincide com o acesso do outro:
_ ouadarachurianda!
_ Vou te mandar calar a boca. Cala a bola!
Todos riem. Elogiam. "Agora o Mário acertou".
Ele se encaminha para o paredão da farmácia e chama:
_ Lady Kalarram!? Simone!?
A moça da farmácia:
_ Quem é?
_ Jesus Cristo!
_ Jesus Cristo me chamando? Não atendo. Jesus Cristo não chama. Fala direto comigo!
_ É o Nelson! Meu medicamento ficou pronto?
_ Já vai, Nelson!
O cesto desce, recebo meus medicamentos, o RG e me encaminho para o guichê de remarcação de consulta.
Lá, uma senhora alta e um pouco tremula aguarda.
_ Beatriz, afaste-se um pouco para eu atender a paciente.
Ela  se afasta e pede:
_ Quero telefonar.
_ Telefonar para quem, Beatriz?
_ Para o Aécio.
Enquanto a  atendente aguarda o sistema para remarcar minhas consultas disca um número e solicita:
_ Gostaria de falar com o senhor Aécio Neves por favor.
Ela aguarda um pouco e passa o telefone para a paciente que de pronto começa a conversa.
_ Seu Aécio, tudo bem?
_  [....]
_ É eu sei desses problemas. Escuta, você pode me mandar um dinheiro? Estou precisando muito.
_  [....]
_ Tudo bem então. Obrigada viu?
E a atendente me devolve o cartão com as consultas marcadas. Me despeço de alguns pacientes mais conhecidos.
_ Até segunda.

NSL
27/01/16

noite

janeiro foi maravilhoso por suas chuvas e sombras
também por essa fantasia de amor que me fez escrever poemas
os dias escuros tem seus préstimos ao camuflar nossas sombras
versos são maneiras aceitáveis de tocar o outro que, de outra maneira, recuaria
há os que, como eu, lutam contra a tristeza com unhas e dentes
e há os que apegam-se a ela com o amor de bandeira ao seu porquinho-da-índia
mas no fim somos obrigados a perceber de que matéria somos feitos: a noite
onde lê-se: norma de souza lopes leia-se: um lugar muito triste

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

oito cachorros famélicos

oito cachorros famélicos e magrelos
me esperam no portão 
me olham com o mais absoluto desdém

suspeito que me conheçam intiimamente

NSL
26/01/16

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

nenhum mal se perdeu

nesta minha vida que eu estimo curta
nenhum mal se perdeu
vejam só vocês o que acabo de aprender
daquilo que em mim parecia alegria
era  mania

é preciso estar pronta para o depois
o inverso do que sou, sombra
que tento iluminar com rios de orações
ou poesia
e é certo que, vez ou outra
uma meia dúzia de palavras
pratica anestesia

NSL

domingo, 24 de janeiro de 2016

Se

conversas entre amigos
a radio atalaia
a caderneta do seu zé
os banhos de enxurrada
as revistas do fantasma
parece que foi no séc. XIX
a erva-cidreira no caminho da padaria
na memoria a imagem sépia
e de repente todos emudecidos
pelo silêncio do que poderia ter sido

Outono de 71

tudo do que digo é de ouvir falar
e de tanto rumor tomo por verdade
era fim de abril de 71
mamãe, inconsciente, deixou-me
entregue à solidão e ao frio

a despeito da eclâmpsia e do fórceps
tornei me hábil na ciência de respirar
e de manter-me viva
invento alegrias de água

mas desisto silenciosamente
armando um detonador sob as carnes
o lento suicídio a base de álcool
drogas de farmácia e de padaria

não culpem mamãe, são escolhas
mas todo dia, hoje em especial
não queria ser tão só
nem sentir tanto frio

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

O morno do chamado
A velocidade exata dos lábios
Eu sou do meu amado
Atrasado mas em tempo
E ele é meu

NSL
21/01/16

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

game over

quarenta e quatro anos e a metade disso de retratos seus
nosso amor (nosso?) é uma canção que ninguém compôs
um jogo de montar no qual a imagem em minhas mãos 
não se encaixa em você, tradução é traição
de nós, nem uma garrafa de vinho barato
mas não era isso que eu tinha para dizer
pedi conselho para minha sombra
e agora pendulo nessa árvore, a sombra no pescoço
tento olhar à esquerda, ver se há marcas
se houver estarei morta 
serei obrigada a concluir 
que sombras não são boas conselheiras



NSL

20/01/16

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

domingo, 17 de janeiro de 2016

CUSTOM
"This is no dark custom" ­ Gertrude Stein
Some days you wake up and find god in your shoes and you don't know who put it there. Or the little gold clocks in your irises, or the long stems of sun on your desk. So you just dress in coffee and beautiful rags and be glad of it, ashes and all. And you hum to yourself some ridiculous tune that sounds like a handkerchief stuffed in your mouth. Which means that you won't get a single thing done, oh no not today, but your papers don't mind. They lie around like wanton brides and admire you anyway. Fat apples blossom in baskets left on your table; wine turns into wine. And the windows, my god the windows have gathered absurd amounts of sky. If the shoe fits, the foot must be mine. Someone who loves you dreamed double last night.
(from LATE, BOA Editions, Ltd. 2003)


Traje

"Este não é um traje escuro" Gertrude Stein

Alguns dias você acorda e encontra Deus em seus sapatos e você não sabe quem o colocou lá. Ou os pequenos relógios de ouro em suas íris, ou as hastes longas de sol em sua mesa. Então você apenas se veste durante o café com belos trapos e ficam contentes com isso, cinzas e tudo. E você cantarola para si mesma alguma música ridícula que soa como um lenço tapando sua boca. O que significa que você não terá uma única coisa feita, oh não, não hoje, mas seus papéis não se importam. Eles mentem em volta de você como noivas devassas e a admiram de qualquer maneira. Maçãs gordas desabrocham em cestos deixados em sua mesa; o vinho se transforma em vinho. E as janelas, meu deus as janelas reuniram quantidades absurdas de céu. Se o sapato se encaixa, o pé deve ser meu. Alguém que ama você sonhou duas vezes na noite passada.


(in LATE, BOA Editions, Ltd. 2003)

Tá, já sei
o destino não pega no tranco
mas, coubesse uma ligação direta
para por em marcha o desejo
eu cobriria seu corpo de flores
celósias rubras e túmidas 
em contraste com sua pele
só para o desfrute do olhar

aliás, se apenas me abraçasse 
e apertasse minha respiração 
com seus cabelos, seria suficiente

NSL
17/01/16



Tradução do poema de Cecília Woloch

Slow Children at Play

All the quick children have gone inside, called
by their mothers to hurry-up-wash-your-hands
honey-dinner’s-getting-cold, just-wait-till-your-father-gets-home-
and only the slow children out on the lawns, marking off
paths between fireflies, making soft little sounds with their mouths,
ohs, that glow and go out and glow. And their slow mothers flickering,
pale in the dusk, watching them turn in the gentle air, watching them
twirling, their arms spread wide, thinking, These are my children, 
thinking, Where is their dinner? Where has their father gone?
—Cecilia Woloch

Crianças lentas brincando 
Cecilia Woloch

Todas as crianças rápidas foram para dentro, ao chamado 
de suas mães para lavar-as-mãos, espere-só-até-seu-pai-chegar-em-casa
e apenas as crianças lentas permanecem fora de casa, no gramado
caminhando entre os vaga-lumes, fazendo pequenos sons suaves com suas bocas,
ohs, esse brilho e saem e brilham. E suas mães piscam lentamente,
pálidas ao entardecer, observando-os girar delicados no ar, observando-os
rodopiando, seus braços abertos, pensando, Estes são os meus filhos,
pensando: Onde está o seu jantar? Onde fora seu pai?

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

ritornelo

ritornelo I

você é a dose de caos
que impede que o circulo dos dias
me engula com sua garganta de tédio


ritornelo II

cuidado com a poesia
ela te tira da realidade
e te faz naufragar

cuidado com a realidade
ela te tira a poesia
e te faz naufragar

NSL
13/01/16

sábado, 9 de janeiro de 2016

Sacramento

fosse um sacerdote 
não seria tão digno
diante de minha confissão


a paixão, essa louca, gritando
confessa, vai
nem me deu tempo
de estar pronta para o seu não

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

deu na galileu

deu na galileu 
rejeição dói literalmente
[como se eu não soubesse]
há década desenvolvo técnicas
para camuflar o amor

se não renuncio 
a invenção de minhas paixões
é por elas me defenderem dos tempos
e me trazerem eterna
todo dia de volta para casa
sem que eu tenha recebido 
sequer um beijo ou abraço

para os mais afoitos 
pode parecer patético
mas desafio, mostrem-me 
algo mais potente
que a imaginação 
NSL
05/