quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Epilogo

As quarenta anos Olívia decidiu que queria escrever sua história. Não a história da professora, esposa e mãe de filhos. Queria contar a história da menina que a despeito da violência e da fome, conquistou para si dignidade e respeito. 
Escreveu a primeira coisa que se lembrou. Quase se via na horta da casa antiga. Lembrou-se da mãe, dos irmãos, do pai, da avó e dos tios. Todos, à sua maneira, haviam deixado fragmentos na narrativa de Olívia. Mas de todos, podia dizer que amava mais a si mesma. Foi a única que não desistiu de si. Olívia sorriu quando olhou no espelho e se viu assim, uma balzaquiana existencialista que viveu uma história mais linda  que a Ilha Perdida do Defoe.
Viu que era capaz de rir daquilo tudo. Agora já podia finalizar a história.

Norma de Souza Lopes

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Minibiografia

Mãe gari, pai pedreiro e marido carpinteiro. Entre esses varres e fazes dos meus queridos me tornei o que sou, professora, ensaio de poetisa, aspirante a escritora.


Norma de Souza Lopes

Cambiar

“O jarro é feito de barro moldado. O uso do jarro está no seu interior vazio (...)
 O 'ser' confere existência. O 'não-ser' confere utilidade”. 
Lao Tsé in  Tao Te King


Arrastar os móveis a sua procura me fez ver a quanto tempo estão no mesmo lugar, Gwenever. Eu também estou imóvel há tempos. Desde que associei movimento psicológico à dor passei a chafurdar na zona de conforto. Me custa mudar casa, de trabalho ou de idéia. E por isso sigo desistindo de novos projetos e rejeitando desafios. Uma covardia sem precedentes.
Mas pior que não mudar é a ausência de instinto que vejo em mim.
Elegi você minha confidente por achar que acordaria em mim aquilo que em você é essência: o impulso vivificante que movimenta na direção das necessidades. Como um réptil, gostaria de reagir para minha sobrevivência sem cólera e sem culpa. 
Uma lagartixa sente culpa, Gwenever?
Estou certa que não!
Tenho feito escolhas pensando no melhor para o outro. Te contei daquela viagem em que cedi meu lugar no carro porque o cinto de segurança do outro passageiro não funcionava? Naquele momento pensei que, mesmo sobrevivendo a um acidente, não sobreviveria à culpa de ter escolhido estar em segurança enquanto o outro corria riscos. Hoje penso que essa escolha revela a falta do instinto de sobrevivência.
Nos últimos dias cedi meu lugar para outros por duas vezes no trabalho. Escolhas semelhantes às do caso do cinto de segurança. Faço essas escolhas por que formatei um modelo mental na contramão do egoísmo e da conseqüente rejeição. Trata-se de um modelo que busca me proteger do isolamento e da solidão, sentimentos que temo como a morte. Elas também refletem minha imobilidade psicológica, minha preguiça existêncial.
Busquei proteção na coletividade mas esse modelo já cumpriu seu papel. Me tirou do poço amargo e bélico que foi  minha infância e adolescência.  
Quero outro modelo, Gwen. 
Desejo instalar em mim aquele estado de espírito que sempre me tirou do lugar no passado. Basta focar em algum objetivo altaneiro para tomar distância desses competidores do meu cotidiano. Uma coletividade que não compreende o valor do ganha-ganha não me serve. Sempre entrego de mim meu melhor e arrisco ficar sem nada. Está na hora de mudar de bando, de beber em outras fontes.
Mas não se preocupe, Gwenever,levo você comigo onde for.


Norma de Souza Lopes



segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Transbordante

Era de se esperar que tivesse a alma seca, por ser sem filhos e por nunca ter sido preenchida pelo desejo de um homem.  Cinquenta anos, virgem, pagem de pai, mãe e irmãos desde a puberdade, Carminha era cheia de uma santidade incompreensível para seres seculares como nós.
Agora que morrera o último irmão, ela se ocupava mais conosco, tornando o trabalho do departamento mais agradável. Se encarregava de todos os lanches da tarde, de toda cesta básica, de todo enxoval de bebê que acaso alguém precisasse.
Quando questionada se arrependia-se de ter doado a vida a serviço do outro sorria candidamente e respondia que aquilo era o que o Cristo queria dela. Nunca admoestava ninguém com rispidez. Só tinha palavras de amor - Não ignore os dons que Deus te deu, Maria Lúcia - dizia à colega do setor ao lado que reclamava da vida. Esse era o máximo rigor que apresentava na fala.
Um dia anunciou  a aposentadoria. Nossa tristeza não combinava com a alegria dela. Agora poderia trabalhar em horário integral na Igreja São José, um sonho que ela alimentava há muito. Não podíamos compreender como alguém pudesse viver apenas para o serviço cristão. Para nós ela era um copo vazio por ter dado tudo que tinha. Mas como cantaria Chico, é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar.

Norma de Souza Lopes

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Livro aberto

Dois dias e você sumida, Gwenever. Deliberadamente me deixou traduzir sozinha essa enchente de emoções que me atravessa. Não sei fazer isso. Tampouco sei ler ações e comportamentos alheios. Tenho me enganado com todos a minha volta.
Para conhecer pessoas é necessário apreender a realidade do entorno. E para apreender a realidade é necessário apreender os fatos e extrair sua essência. O problema é que fatos sempre estão misturados com pessoas e suas complexidades.
Não vejo regularidade observável no comportamento daqueles que me cercam e por isso sigo tateando às cegas, em busca de alguém em quem possa confiar. Mas ninguém é confiável o suficiente a ponto de ignorar minha incompetência existencial. Sempre coloco o outro a frente de mim mesma e quem me cerca sabe disso. Sou um imâ para egoístas e com isso sofro muito.
Esse modelo plástico de personalidade e de caráter não ajuda. Estou sempre pronta para questionar meus paradigmas e modelos mentais, afinal posso estar errada.
O outro, diante de mim, esse livro aberto, torna-se ávido leitor, imprime orelhas às minhas páginas, sublinha trechos, acrescenta glosas às margens. E eu, que era uma escritura definida, vou me tornando uma brochura manuseada e descaracterizada.
Poderia escapar a isso me mantendo fechada como um livro virgem, de folhas coladas e palavras inexploradas. Mas isso me negaria o gozo de ser traduzida, lida e relida pelos olhos dos outros. O esforço de manter a psiquê intocada me privaria da alegria de ver no olho do outro a admiração diante da beleza de minha alma. Sentimento  que não posso obter em mim mesma, posto que como um livro não posso me ler com propriedade.
Meus olhos são competentes quando se lançam para fora, para o mundo sensível. Olhar para dentro é diferente. É como identificar o movimento de neutrôns em um átomo usando raios de neutrôns. Po isso sempre ponho sob suspeita uma leitura de mim mesma uma vez que meu mundo interno é paisagem sem contrastes, fora de perspectiva. 
Diante disso escolho me revelar. Mesmo que ocasionalmente tenha que ir desfazendo as marcas deixadas em mim.
Agora vou arrastar os móveis para ver se te encontro, Gwenever. Preciso de um pouco da sua ira reptiliana para sair dessa lama em que me encontro.

Norma de Souza Lopes


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Não te encontro em canto algum Gwen. Eu aqui, mergulhada nesse rio de lágrimas, mais uma vez fugindo do convívio laborativo, e você no trottoir  anônimo de lagartixa. Você não está aqui para me dizer que fiz a escolha certa e eu estou indisposta para a vida. Já fiz esse caminho e tinha escolhido viver. Agora o desejo é outro.
Não estou certa se minha transparência seja a reação mais adequada a esses tantos outros que me cercam. Hoje a dor me engoliu e eu fui até eles, revelei inteira a minha raiva e decepção, meu medo e minha gana por adequação, rasguei minha alma e mais uma vez me vi andrajosa aos olhos do mundo.
Já sei que no futuro irei me arrepender das revelações. De que vale colocar minha consciência sobre a mesa como visceras de um  pássaro morto no cárcere? Esse exercício é solitário. Os outros continuam máscaras. Ninguém se revela. Estou sozinha nessa cena.
Depois de saciar a sede de fracasso que me ronda o que vejo são seres apavorados de medo diante de minha alma desnuda. Tenho constrangido meus adversários e afligido meus amigos. Esses segundos me querem forte e falsa. Justo o que não quero ser.
Se você estivesse aqui Gwenever, me diria que gozo essa dor quando não a abandono. Teria errado na fala. A injustiça, essa adaga afiada traspassada na carne, não pode ser arrancada por mim mesma. E o outro, que poderia arrancá-la admitindo o erro ou devolvendo-me o direito, apenas contrói alegações de autodefesa. Isso quando não me acusa publicamente. A dor que sinto depois disso é real.
E para completar o prato de decepções, não vejo humildade. Também não consigo ser humilde. Choro lágrimas orgulhosas e ressentidas e fujo mais uma vez. Agora vou dormir. Felizmente estou sozinha e ninguém irá assistir a tragicomédia de minhas digressões narcisicas.
Vê se aparece amanhã, Gwenever, sem você minha alma réptil degringola.

Norma de Souza Lopes

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Da perda e da recompensa

Não adianta Gwenever. Quero deixar esse trabalho e esse lugar. Por mais que eu faça o exercício de aceitá-los ainda concordo com Sartre: o inferno é esse outro que me invade. Sinto que surrupiam minha sorte na vida e que são responsáveis por minhas agruras. Leio em cada risada que ouço. Está escrito que eles se divertem com minhas derrotas. Não fosse minha incursão pregressa no cristianismo arrancava cada jugular no dente.Sem piedade.

Por mais que eu seja empática, que me movimente na direção do outro, não há retorno. Ainda tenho que ouvir suas falas acerca de mim. Minha auto-imagem megalômana é avessa às opiniões a meu respeito. Ouço e não me reconheço.

Lembro de Karen Horney e suas teses acerca da inveja. Por isso ainda me dou ao trabalho de questionar minhas motivações. Sofro a perda. Sinto raiva. Mas, e se a raiva for do beneficio alcançado pelo outro? Vejo-me refratária, ressentida e irascível. Depois do desfecho de ontem escrevi aleatoriamente umas oitenta palavras. Você pode calcular quantas vezes a palavra ressentida apareceu, Gwenever? Doze vezes. Isso sem contar as aparições das palavras magoada, irada e condoída.

Estou a meses nessa luta. Fiz uma escolha errada. Em conseqüência fui posta em um lugar que não gostaria de estar. Logo eu, Gwenever! Eu era uma das melhores dessa cidade. Nem isso me garantiu o melhor lugar. Para completar ainda fui rejeitada. Sinto pena de mim!

De novo esse vício em autocomiseração incurável. Gozo mergulhar nesse viscoso lago de fel. Não consigo sequer conversar com aqueles que penso terem me traído. Sobretudo tenho sede de vingança. No entanto sou covarde demais para executar. Faço pior. Destilo essa ira cotidiana, silenciosa. Tomo copo de veneno para o outro morrer. Não é patético, Gwenever?

Hoje me vi numa cena surreal. Eu, andrajosa e recalcada, arrastava minha desgraça diante dos outros. Os andrajos são esses ombros curvados, os olhos inchados, a tez caída e essa boca côncava. Espetáculo tosco e pueril. Ninguém sofre com isso. Todos se aliviam por não estar no meu lugar. Sou aquela que ninguém quer ser. Logo eu, tão vaidosa, figuro papel rejeitado.

Você, que é tão versada em coisas do sobrenatural, sabe o que Deus quer de mim nesse momento, Gwenever? Em seu mundo de lagartixas há disputas tão perversas, como em meu mundo do trabalho? Espero que não. Você, meu alterego reptiliano, tem me amado de um jeito tão cândido que não merece sofrer rejeição ou traições. Acho que eu também não. Acredito em você. No futuro está a recompensa.

Norma de Souza Lopes