SEM MEMÓRIA
Ele abriu os olhos devagar.
De repente se deu conta que não saiba nada de si de do que estava a sua volta.
Piscou os olhos várias vezes até se acostumar com a claridade da manhã.
Vasculhou os bolsos e achou um deles estranhamente mais aberto que os outros. Nesse bolso uma pequena caixa preta aveludada guardava um colar de ouro. No pingente, um nome em fonte caligrafada.
Íris.
Ao final da pesquisa nos bolsos não achou nada que lhe desse a mínima pista acerca de quem era, de onde vinha e para onde estava indo.
Fechou novamente os olhos por um tempo maior e tentou encontrar em sua memória algo que pudesse ajudar.
Nada, nem memória havia. Tentou ler os letreiros dos outdoors do lado de fora da janela do ônibus.
E o ônibus, para onde o levaria?
Não se preocupou em se levantar, pois a idéia de descer lhe parecia mais assustadora que permanecer sentado no fundo do coletivo. Era ali que sua existência tinha se manifestado e desembarcar seria como deixar pra trás sua vida improvável.
A ansiedade dificultou a respiração e ele começou a comprimir e relaxar o diafragma de tal maneira que sentia o ventre se avolumar. Havia aprendido que respirar assim diminuía a ansiedade. Quando? Também não se lembrava.
Uma senhora que estava sentada alguns metros à frente olhou pra trás e sorriu de maneira cordial. TUM!TUM!TUM!
Era o barulho do seu coração. Será que ela o conhecia? Teve ganas de perguntar, mas algo na expressão da mulher o levou a crer que o sorriso tinha sido uma generosidade anônima.
Observou o homem barbudo que desembarcava do ônibus. Feliz era ele que sabia para onde ia e onde devia descer.
Aos poucos as pessoas foram deixando o ônibus e em instantes ele era o único passageiro. Percebeu no olhar do cobrador uma interrogação e entendeu por que. Havia chegando à estação final e ele fatalmente teria que descer. Vasculhou mais uma vez os bolsos, respirou fundo e se encaminhou para a porta de trás do coletivo.
Na rua o desolamento o invadiu e ele se sentou na calçada para esboçar um planejamento mínimo do que fazer. Levantou-se e caminhou até um bar próximo dali. Na fachada a pintura com o nome do bar parecia ter mais de dez anos.
Cê Ki Sabe.
Sentiu uma familiar aversão ao nome, mas não soube identificar se era pelo português maltratado ou por uma experiência pregressa desagradável.
No balcão uma garota amarela observou com curiosidade sua entrada. Pediu um refrigerante e depois de pescar no bolso uma nota amassada percebeu que nela havia um número e um sobrenome: 146 – Bruzzi. Devolveu a nota para o bolso e pagou com duas moedas. Aquilo poderia o ajudar mais tarde.
Calculou quanto ainda havia no bolso e perguntou à garota se por ali havia uma pensão. A paisagem de periferia o fez acreditar que seu dinheiro daria para uma semana em qualquer pensão por ali.
A garota sorriu interessada. Ali não havia pensão, mas a Dona Nininha alugava um quarto para rapazes solteiros (sorrindo até as orelhas quando disse a palavra solteiros).
Desejou ter um espelho para ver seu rosto. Não se lembrava da aparência, mas pela cara da menina percebeu que não devia ser uma figura desprezível.
Pediu a direção da casa da tal Dona Nininha e saiu em busca do quarto. Piscou intensamente ao sair do bar e só então percebeu uns óculos escuros no bolso da camisa. Colou-os no rosto.
Bateu palmas suavemente na porta da casa indicada e uma gorda vestindo um vestido que mais se parecia uma saia amarrada sobre os peitos apareceu na porta. Perguntou sobre o quarto e a mulher pareceu surpresa. O quarto não servia pra um homem fino como ele.
Como assim fino?
A mulher apontou para os óculos e para a calça de linho: alguém que usasse algo tão caro não iria gostar do seu quartinho.
Teve que insistir muito para poder entrar e ver o quarto. Lá dentro pode perceber que o lugar, mesmo sem luxo, poderia atender ao propósito da semana. No quarto havia apenas uma cama de solteiro, de madeira escura e cabeceira torneada. Do lado da cama uma cômoda de eucalipto parecia querer cair a qualquer momento sob o peso do filtro d’água sobre ela. Abriu as gavetas vagarosamente e viu que estavam vazias.
Perguntou o preço do quarto e descobriu que mesmo pagando duas refeições todo dia seu dinheiro daria para quase duas semanas.
Pagou uma semana adiantada e começou a contar para a mulher toda sua vida. Ou os últimos quarenta minutos que se lembrava.
Viu em seus olhos uma faísca de medo, mas percebeu que ela preferiu optar pela solidariedade. Fazia várias perguntas, falava de um médico que conhecia e em cinco minutos deu tantas sugestões que ele ficou meio tonto.
Nininha, esse era o nome da mulher. Era irônico pronunciar o nome Nininha fitando aquela mulher grande e gorda. Impressionou-se com a capacidade solidária de pessoas simples como ela. Não que se lembrasse de outras pessoas, mas intuía que aquele comportamento era raro.
Perguntou a Nininha se havia uma lista telefônica em casa. Não havia.
Decidiu entrar para o quarto e dormiu por doze horas seguidas.
Pela manhã saiu para a rua novamente em busca de um local onde se encontrasse uma lista telefônica. Fitou a nota e suas inscrições “Bruzzi – 146” e de repente lhe ocorreu que aquela poderia ser a letra de qualquer, sem significado para si.
Parou numa farmácia e antes de pedir a lista telefônica pediu papel e caneta. Escreveu repetiu a inscrição da nota com letra cursiva e respirou aliviado quando percebeu que aquela era a sua caligrafia. Folheou exultante a lista telefônica em busca do sobrenome “Bruzzi”. Cento e cinqüenta e seis sujeitos com o mesmo sobrenome.
Nenhuma Íris Bruzzi.
Precisaria de grana para esses telefonemas ou de uma estratégia para telefonar gratuitamente.
Olhou discretamente para a atendente e, percebendo que ela não estava vigiando, rasgou duas páginas da lista telefônica e guardou-as rapidamente no bolso. Comprou um cartão telefônico e deixou a farmácia com um agradecimento. Logo na saída trombou com uma bela mulher. Aqueles olhos tristes deixaram uma sombra tão profunda na sua alma que demorou a desviar o olhar. Pediu desculpas pelo encontrão e perguntou se ela havia se machucado. Ela respondeu com um meneio de cabeça e entrou apressada. A desconfiança de que algo no passado se referia a uma mulher triste surgiu quando sentiu o efeito devastador da visão daqueles olhos. Soube naquele momento que nunca mais os esqueceria.
Dirigiu-se a um orelhão que havia visto perto dali. Ligou para o primeiro Bruzzi da lista. A falta de planejamento para a ligação fez com que ele ficasse constrangido ao telefone:
__ Alô?
__ Com quem você quer falar?
__ Com Alberto Bruzzi.
__ Ele não está!
__ Você saberia me dizer se há alguém que ele conheça que está desaparecido?
__ Como???
__ É que eu perdi a memória e a única coisa que tenho é uma nota com esse sobrenome Bruzzi!
__ .........????
__ Você saberia... Alô????
Percebeu que a abordagem telefônica não tinha sido adequada. Teria que pensar melhor em como fazer isso. Ao mudar de posição no telefone viu que a mulher dos olhos tristes havia saído da farmácia e caminhava em direção a um supermercado.
Deixou o telefone e seguiu em direção ao supermercado. Questionou-se por estar seguindo esse impulso, mas argumentou consigo que precisava comprar algo para comer e o supermercado era um bom lugar. Ela pareceu não perceber que ele a seguia. Caminhava tão cabisbaixa que seu queixo quase tocava o peito. No corredor de biscoitos pode olhar para ela mais atentamente, pois estava distraída pesquisando as embalagens. Os cabelos caiam em cascata sobre os ombros.
Não era nem magra nem gorda. Tinha formas generosas que a calça jeans salientava. Os pés, esses eram dignos de ser olhados mais de uma vez. Pequenos e delicados, com pequenas unhas claras, dedos juntinhos como de um bebê, estavam calçados por uma sandália baixa e aberta, dando lhe o prazer de olhá-los com atenção. Ela, que não havia percebido ainda suas observações, curiosamente pareceu embaraçada com o olhar insistente sobre seus pés. Ele se movimentou desconfortavelmente como se tivesse sido pego em delito. Pegou o primeiro pacote de biscoito que estava ao alcance das mãos e caminhou em direção ao caixa. Sentiu que ela o seguia e se desesperou. Se ela perguntasse algo ele não poderia responder. Nem seu nome sabia. Lembrou do fracasso do primeiro telefonema. Ela estava se aproximando...
Pensou em um nome. Mas sentiu que aquela era uma mulher para quem não podia mentir. Não inventaria um nome. Um apelido talvez. Mas qual?
Precisava ser algo que se parecesse com qualquer nome: Caco? Duda? Vavá? E ela cada vez mais perto. De repente sentiu a mão dela em seu braço.
__Você deixou cair essa nota no chão.
__ Obrigado.
A voz custou a sair. O tom gutural revelou o mal estar.
__ Você mora por aqui?
__ Moro a duas quadras daqui.
Será que o quarto que alugara no dia anterior poderia ser considerada morada? Pensou no nome e de repente um lampejo. Ele, ainda menino, corria numa várzea e outros moleques o gritavam._ Tuca!_
__ Qual o seu nome? Moro aqui há algum tempo e nunca te vi.
__ Pode me chamar de Tuca. Mudei-me recentemente. E você, como se chama?
Como gostaria de abraçar aquela mulher e dissolver o olhar tristonho. Ainda bem que ela conseguia conversar.
__ Me chamo Nara, como a cantora, lembra?
Ela estava sorrindo agora. Não lembrava. Nara? Nara? De que cantora ela estaria falando. Desconversou perguntando sobre uma placa de emprego afixada depois do caixa.
__ Será que eles pagam bem?
__ Você está desempregado? Fazia o quê?
Mais perguntas. O coração parecia que ia saltar do peito. Se contasse agora corria o risco de nunca mais a ver.
__ Estou precisando tanto que pegaria qualquer coisa.
Ela riu de novo. Flutuou naquele sorriso. Ela o segurou pela mão e o fez sair do caminho de um carrinho de compras que vinha atrás. Torceu para que ela não percebesse suas mãos frias.
__ Nara você disse, né? Onde você mora?
E se ela tivesse receio de dizer? Tinha sido muito apressado, deveria ter esperado a conversa tomar mais corpo. Mas ela não suspeitou.
__ Você está vendo aquele sobrado detrás da farmácia, na outra rua? Moro ali. Mas não morei sempre lá não. Morava a três quarteirões daqui. Mudei-me há dois meses para essa rua.
A moça do caixa acabou de cobrar dos dois eles saíram meio sem rumo. Ela encerrou a conversa.
__ Boa sorte com o emprego Tuca. Tchauzinho.
E saiu caminhando vagarosamente sob olhar enlevado de um desmemoriado. E nesse momento ele torceu para morar para sempre na mesma rua que ela.
Passou a tentar organizar o esboço de vida que havia recebido de presente quando acordou no ônibus. A noite no quarto da pensão foi o suficiente para descansá-lo das emoções do dia anterior. A cama era confortável e a rua era bastante silenciosa à noite.
Conversou com o gerente sobre o anúncio da vaga de almoxarife. O rapaz estava tão frenético que o pediu para começar imediatamente. Tuca explicou que estava sem os documentos mas o gerentes pareceu não se importar. Levou-o ao depósito e após mostrar pilhas de produtos afirmou que seu trabalho seria conferir as notas e verificar as quantidades.
_ Duzentas pratas por semana.
Nada muito difícil.
Mas teria que começar imediatamente. Turno de seis horas, de quatorze às vinte.
Trabalhou exaustivamente e por algumas horas pode esquecer sua luta para recobrar a memória.
Na pensão contou a dona Nininha sobre o emprego e sobre a lembrança do apelido de infância. Ela pareceu feliz. Agora ela podia chamá-lo pelo nome. Tomou uma sopa leve e dormiu novamente.
Dez horas seguidas.
Levantou cedo e, após ter tomado um café pródigo, agradeceu dona Nininha. Sob orientação dela rumou para a delegacia do bairro para se esclarecer acerca do que fazer para encontrar sua história pregressa.
Seu rosto se iluminou quando o delegado que o atendeu disse que faria uma busca papiloscópica nos arquivos de identidade de todo o país a partir de suas digitais. Aquilo era mais do que ele podia desejar. O problema é que essa busca poderia durar de um a seis meses e ele teria que se ajustar enquanto esperava.
Como ele não conseguiriacontinuar no trabalho sem identidade o delegado o orientou a procurar o um psiquiatra para obter um laudo médico, pois com o laudo a delegacia poderia expedir um documento provisório de identidade.
Logo que saiu da delegacia Tuca passou a se informar acerca do psiquiatra. No posto de saúde a alguns quilômetros dali pode conversar com ele. O homem, um chileno macilento chamado Alejandro Figueroa, ouviu todo o seu relato a cerca da perda de memória. Fez inúmeras perguntas.
Como havia despertado?
Que elementos poderiam ajudar a lembrar?
Do que se lembrava?
Averiguou a partir de testes se outras habilidades como a linguagem, a capacidade de abstração, o cálculo, e as habilidades visuo-espaciais estavam comprometidas.
Tuca contou que, na verdade, com exceção do episódio de infância, ele não se lembrava de absolutamente nada. O psiquiatra explicou que ele parecia ter amnésia e que vários exames seriam necessários. Tuca teria que se submeter a exames como tomografia computadorizada de crânio, ressonância nuclear magnética de crânio, sorologia para sífilis, níveis de hormônios tireoidianos só depois disso poderia ter um diagnóstico mais conclusivo. O psiquiatra marcou seu retorno para dali a duas semanas. Na tentativa de animá-lo o psiquiatra havia apontado sua sorte em não perder a capacidade de reagir, de aprender, de se organizar com sua falta de memória. Segundo ele pessoas que perdem a memória geralmente ficam tão confusas e deprimidas que não são capazes nem de se alimentar sozinhas. Tuca fora muito corajoso em achar lugar para ficar de forma independente, de se mover sozinho até a polícia e o médico e isso era um ponto a seu favor.
Mas, apesar dessas palavras, Tuca não pode se animar. Deixou o consultório e, novamente sozinho, se viu com relatório vago e inconcluso, que no máximo serviria para a polícia, mas que o deixava novamente como um não-ser, um não-cidadão, uma não-pessoa. Era com isso que teria que passar seus próximos dias.
No supermercado passou a aprender o trabalho de almoxarife. Um rapaz de vinte e três anos ensinava a tarefa. O garoto passava as instruções sentado. Tivera a perna esmagada por uma empilhadeira e não podia se movimentar. O rapaz no entanto era um bom instrutor e Tuca aprendeu rapidamente a fazer seu trabalho.
No supermercado passou a aprender o trabalho de almoxarife. Um rapaz de vinte e três anos ensinava a tarefa. O garoto passava as instruções sentado. Tivera a perna esmagada por uma empilhadeira e não podia se movimentar. O rapaz no entanto era um bom instrutor e Tuca aprendeu rapidamente a fazer seu trabalho.
Naquela noite sonhou que estava em uma casa de praia que fora invadida pela areia. Por mais que varresse e limpasse os cômodos a areia não arrefecia. De repente o pó que avançava sobre o chão começou a subir por suas pernas e braços, invadindo entre os dedos, a boca, as orelhas e o nariz. Tuca sentia que não podia respirar e que sua pele havia se transformado numa camada espessa de areia. Onde a camada se formara ele podia sentir sua textura áspera, como a língua de um gato. Ele saída da casa e de repente se via no alto de um abismo, olhando para baixo. Lá em baixo, na praia, ele via um corpo de mulher estendido no chão. Sem se dar conta do sonho Tuca tentava respirar desesperadamente. Um barulho de marola chamava sua atenção. As ondas do mar soavam com um ritmo característico, como batidas em madeira. O som foi se avolumando e tomando conta do sonho: PAM! PAM! PAM! PAM!
Então Tuca abriu os olhos e pode respirar com propriedade. O som que havia invadido seu sonho era na verdade as batidas nervosas na porta do quarto.
_ Seu Tuca! Seu Tuca! _ Era a voz de Dona Nininha que chamava assustada.
Tuca abriu a porta e soube que seus gritos noturnos haviam acordado a locatária.
_ O Senhor estava gritando tanto que eu achei melhor bater na porta para acordá-lo. Está se sentindo bem?
_ Foi apenas um pesadelo, pode se acalmar que está tudo bem, muito obrigado por ter me acordado.
Depois de se despedir de dona Nininha e fechar a porta do quarto Tuca respirou aliviado. Aquele sonho maluco havia lhe tirado o fôlego.
Por uma semana trabalhou sem o registro. Seu afinco impressionou o gerente, mas no quinto dia ele demonstrou irritação quando Tuca afirmou não ter trazidos os documentos novamente.
Tuca então se viu obrigado a revelar toda sua história. Contou sobre sua chegada naquele bairro. Contou sobre a pensão, mostrou os registros na polícia e o relatório médico. Explicou que precisava do trabalho e garantiu que em uma semana teria um registro provisório.
Assim como dona Nininha, o gerente preferiu acreditar. Mas foi incisivo:
__ Se em uma semana você não me trouxer documentos vai estar fora!
Tuca se impressionou com a própria segurança ao conversar com o gerente. A verdade era que ele não tinha certeza que em uma semana seu problema com a falta documentos estaria resolvido. A cada dia o seu mal.
Havia ganhado uma semana.
Isso era bom.
Saiu do supermercado para contar mercadorias que estava sendo descarregada quando viu Nara caminhando em sua direção. Ela sorria de orelha a orelha e parecia feliz em revê- lo.
_ Então você conseguiu o emprego!
_ Pois é.
Suas mãos começaram a suar molhando as notas na prancheta. Ficou difícil registrar porque a caneta deslizava entre seus dedos.
_ A que horas você larga o trabalho?
A garganta seca grudou a resposta:
_ Por volta de dez e meia eu já vou estar livre.
_ Gostaria de tomar umas cervejas? Conheço um lugar aqui perto onde servem uns petiscos divinos.
Nesse momento ela pareceu perceber a ousadia do convite. Enrubesceu como uma pimenta e passou a olhar fixamente para um buraco no asfalto.
Tuca saiu em seu auxilio com essa:
_ Eu ia mesmo te convidar, mas conheço poucos bares por aqui.
Ela pareceu aliviada com a saída.
Tirou da bolsa um bloco de notas e registrou nele o endereço.
_ Vou te esperar lá pela onze para dar tempo de você se trocar.
Tuca não pode ver Nara saindo quase saltitante. Ele abraçou o endereço como uma prancha de isopor em alto mar. Quando se lembrou de olhar ela já ia longe.
Ao final do dia de trabalho pode recebeu seu pagamento. Na sessão de camisaria do supermercado comprou uma camisa.
Escolheu uma de cor rosa - chá. Mércia, uma atendente de seu turno lhe sugeriu a cor afirmando que homens que se vestem de rosa parecem menos afoitos no primeiro encontro. Foi Mércia também que escolheu para ele uma colônia na seção de perfumaria.
_ Você vai arrasar, esquecidinho!
Correu como uma bala para a pensão. Banhado, vestido e perfumado partiu em busca do sobrado de Nara com o endereço em punho.
Na hora de tocar a campainha sentiu o suor nas mãos.
_ Agora não!
Começou a respirar profundamente até sentir que a transpiração havia diminuído.
Nara apontou a cabeça na sacada e acenou para que ele subisse. Tuca empurrou o portão enfeitado com volutas de ferro. Subiu as escadas e pode ver Nara descalça na porta, com os cabelos enrolados, abotoando argolas douradas nas orelhas. Entrou no sobrado. La dentro um cheiro de carvalho misturado com ameixas recendia. Era o perfume dela.
_ Você espera um minuto enquanto eu me calço?
Ele não disse mais pensou. Esperaria uma eternidade por ela.
_ Caminhou em direção a sacada e olhando para baixo sentiu o estômago contrair como um bote esvaziando. Não era medo da altura. A memória acusava medo do que poderia ver lá embaixo.
Afastou-se da sacada.
Já calçada e com os cabelos soltos Nara sai vaporosa do quarto. Pegou a bolsa sobre o sofá, as chaves no aparador e após trancar a porta segurou Tuca pela mão.
Só então o nó no estômago se desfez.
A presença da moça ao seu lado era vibrante. O cheiro o balançar dos cabelos com a brisa quente da noite. Tuca se sentia tão consciente que em alguns momentos era como se ele fosse apenas aquela mão que Nara segurava. Firmemente.
O bar era simples e bonito. Grades ao invés de paredes revelavam as luzes da rua e seus passantes. Em cada canto miríades de plantas exóticas perfumavam o ambiente. No fundo uma pequena cachoeira de concreto imitando pedras conferia um pouco de umidade à noite quente. A música baixa parecia ideal para quem queria conversar muito.
Nara pediu a primeira cerveja e dois copos depois Tuca se sentiu mais à vontade para fazer perguntas e, para satisfação da curiosidade de Nara, dar respostas.
Soube que ela havia se mudado recentemente para o sobrado porque não conseguia mais viver na antiga casa. O marido, um programador de sucesso, havia morrido em um acidente de trânsito dois anos antes e depois disso Nara morou na casa da mãe até se mudar.
Na sua vez de falar não pode deixar de sentir certa apreensão.
_ Então. Minha história é mais curta.
_ Não vejo forma de ser mais curta que a que acabei de contar.
_ Na verdade não me lembro de minha história...
_ Como assim?
_ Desci de um ônibus nesse bairro a algumas semanas sem me lembrar de nem um fato de meu passado e sem nenhum documento. Só me lembrei de meu apelido de infância na primeira vez que falei com você e posso dizer que tenho feito de tudo, mas infelizmente não sei quem sou nem de onde vim.
O silêncio de Nara revelava sua perplexidade.
Tuca resolveu falar mais. Sentia que ela se distanciava no silêncio.
_ Tenho me consultado com um psiquiatra e acredito que terei progressos em breve.
Mais uma vez a autoconfiança o ajudou.
Ela respirou profundamente, arqueou a sobrancelha compadecida e perguntou como ele se sentia com tudo aquilo.
_ Tem sido assustador. Vasculho continuamente minha memória em busca de vestígios, mas não encontro nada.
_ Como você conseguiu o trabalho sem documentos?
_ O gerente estava desesperado com a falta de um almoxarife. Contratou-me no susto. Mas, agora que conhece a história, tem me pressionado para fornecer registros. Assim que eu tiver realizados uns exames que o psiquiatra pediu terei um relatório conclusivo e vou conseguir registros provisórios na segurança pública. Eles estão pesquisando minhas digitais mais a pesquisa demora cerca de seis meses.
_ Você está se virando muito bem. Onde está morando?
_ Na pensão da dona Nininha.
_ Que bom! Conheço-a desde pequena. É uma boa mulher.
_ Ela também sabe o que aconteceu comigo. Foi muito confiante em de deixar entrar. Devo muito a ela.
De novo o silêncio.
Sem saber o que fazer com as mãos Tuca juntou os dedos e os apoiou na beira da mesa. Nara então deu pequenos tapinhas em sua mão, como que para consolar.
_ Estou disposta a te ajudar Tuca. De certa forma também estou sem passado. Ele morreu junto com meu marido.
Tuca sentiu aquele afeto aquecendo seu plexo. Não havia se enganado. Ela era realmente maravilhosa.
_ Que tal a gente pedir mais uma cerveja e uns petiscos?
Naquela noite ele a levou para casa de mãos dadas. Não tentou beijá-la. O que ela lhe deu era muito mais valioso que um beijo.
Após ter realizado todos os exames Tuca se sentou novamente com o médico. Em uma receita sobre a mesa ele pode ver algo que se parecia com um teste de carimbo. O carimbo de Alejandro Figueroa, psiquiatra fora carimbado inúmeras vezes, como que para testar a tinta.
Então esse era o nome do médico.
O medico analisou todos os exames fazendo pequenas anotações em sua ficha de anamnese. Ansioso com a resposta sondou com curiosidade a ficha. Nela pode ver, em letras médicas garranchais, as palavras AMNÉSIA DISSOCIATIVA.
Queria saber o que era e o médico se mostrou bem disposto a explicar. Tuca então disparou a primeira pergunta:
_ Doutor, o que é amnésia dissociativa?
_ Agora, com o resultado dos exames físicos, pude identificar que sua incapacidade de recordar informações pessoais importantes leva a crer que você perdeu informações de memórias importantes após circunstâncias traumáticas ou estressantes. O prejuízo é de memória é reversível, mas não podem ser recuperadas de forma verbal. Em resumo acredito que você sofreu um estresse agudo que geraram esses sintomas de esquecimento que você apresenta agora.
E ele continuou solicito:
__ Alguns indivíduos podem ter amnésia após episódios de automutilação, ataques violentos ou tentativas de suicídio. As lacunas de memória que você apresenta causam real sofrimento porque te prejudicam nas interações sociais e ocupacionais. O fato de não ter contanto com nenhum familiar ou amigo torna o caso ainda mais grave. Esse tipo de amnésia surge talvez por que você bloqueou a lembrança de eventos que ocorreram durante um período limitado de tempo, em geral as primeiras horas após o tal evento perturbador de que falei antes.
_ Pode piorar?
_ Te asseguro que o seu não é o caso mais grave. Você não apresentou sintomas depressivos, de despersonalização, estados de transe ou de analgesia. Você também não perdeu as habilidades cognitivas básicas como ler, se comunicar ou realizar operações mentais como multiplicação ou divisão. Está claro também que suas capacidades afetivas não estão comprometidas uma vez que você parece estar caidinho pela tal Nara que você conheceu no supermercado.
_ E a cura doutor Alejandro?
_ Esse tipo de amnésia poderá resolver-se espontaneamente. Agora que você aparentemente foi removido das circunstâncias traumáticas com as quais a amnésia estava associada poderá começar a recordar gradualmente as lembranças dissociadas e isso já começou. Veja como você se lembrou de seu apelido de infância.
_ Na verdade eu queria fazer um tratamento. Existe tratamento para isso?
_ Existe a hipnose...
_ Faço qualquer coisa para sair desse buraco doutor.
_ Vou usar o diagnóstico da hipnose. Com isso talvez nós acionemos a pronta recuperação das recordações perdidas. Começaremos amanhã as sessões de hipnose.
_ Você poderá me dar um relatório para o registro provisório na polícia?
_ Assim que concluirmos a primeira sessão farei o relatório.
_ Muito obrigado doutor. Agora parece haver uma luz no fim do túnel.
No dia seguinte doutor Alejandro passou a atender Tuca em outra sala, menos iluminada, porém mais confortável.
_ Você não precisa ficar ansioso. A hipnose é apenas um relaxamento em que eu faço sugestões para que sua mente se lembre. É você que vai estar no controle noventa e cinco por cento do tempo. É uma maneira de acessar as lembranças dolorosas em ambiente seguro.
_ Tudo bem.
_ Está pronto? Tentaremos um nível médio de hipnose. Só se não for suficiente tentaremos níveis mais pesados.
_ Estou.
_ Agora olhe fixamente para aquela parede e respire profundamente dizendo "Relaxe Agora!"
_ Agora feche os olhos. Relaxe os olhos. Relaxe o pescoço. Relaxe o tórax. Relaxe as pernas. Continue respirando profundamente.
_ Agora seu corpo está tão solto, mole e leve que você começa a subir. Você está protegido por uma grande bolha transparente e flutua sobre sua antiga casa. Conte-me o que você vê.
_ É noite. Vejo um prédio de nove andares com luzes em todas as janelas.
_ Procure a janela do seu apartamento. A bolha agora vai se mover até ela. E entre pela janela. O que você vê?
Tuca então começou a respirar ofegante.
_ É na janela do último andar. Vejo uma briga.
_ Me relate essa briga.
_ Um homem está me atacando. Eu estou no chão. Uma mulher de roupão aparece...
Tuca começa a se mover e a chorar baixinho.
_ Me conte o que acontece, Tuca.
_ A mulher bate na cabeça do homem.
E Tuca chora copiosamente.
_ Ela está jogando ela pela sacada. Não! Solta!
O médico pareceu preocupado com os níveis de estresse que Tuca apresentava.
_ Tuca, você agora vai despertar, quando acordar vai revigorado. Você vai gradualmente se lembrar do que aconteceu naquela noite. Acorde!
Tuca se levantou, agradeceu. Depois das explicações do doutor Alejandro ele deixou a clinica ainda se sentindo meio atordoado.
Seguiu para o supermercado, ainda precisava trabalhar. Em alguns momentos se sentia mais forte, mas a todo o momento era assolado por imagens fragmentadas do passado.
Aquele dia parecia não querer acabar. O gerente continuava pressionando até que Tuca telefonou para a delegacia. Porém o delegado ainda não havia expedido o documento provisório.
O encontro do dia anterior, somado à sessão de hipnose havia detonado uma série de lembranças desconexas, confusas e esmagadoras. O que no começo eram apenas lembranças de eventos isolados agora estava se tornando uma avalanche de imagens. Cada lembrança feria Tuca como um soco no estômago.
Lembrava-se do dia em que havia percorrido as ruas até encontrar uma joalheria. Era seu quinto aniversário de casamento e queria caprichar no presente.
Avistou a loja.
Bruzzi, número 146.
Na vitrine, um lindo colar com o nome dela.
Como estava sem papel anotou o nome da loja em uma cédula.
Lembrou-se de chegar emocionado em casa, apalpando a caixa nos bolso, ansioso por ver a reação de Íris diante do presente.
Ela estava no banho.
A campainha tocou.
Lembrou-se de abrir a porta do apartamento para um homem com roupa de entregador de flores naturais. Só depois de abrir a porta suspeitou. Íris sabia que ele não gostava de flores naturais por que sofria ao vê-las secar.
O homem então sacou uma arma. Tentou fechar bruscamente a porta, mas o estranho a bloqueou com o pé. Tentou esmagar seu pé, mas o olhar ameaçador o fez desistir.
_ Cê que sabe.
Inúmeras vezes a imagem do estranho enraivecido e assustado invadia sua mente. Via seu rosto sobre si como numa luta. Quase podia sentir o forte cheiro de nicotina e suor que o homem exalava enquanto se debatia, tentando se soltar.
Íris apareceu de roupão. Tentou defendê-lo batendo com um alter de ferro na cabeça do homem. O homem caiu por alguns segundos.
Não o suficiente para eles se protegerem.
O estranho se levantou, agarra Íris pelos braços e lançou-a pela sacada. Íris se debateu, tentou agarrar o parapeito. Antes de cair Tuca pode ver o olhar triste dela. Ela sabia que ia morrer.
Lembrou-se então de ouvir o barulho do corpo batendo no chão, como um grande saco repleto de lixo. Lembrava-se de olhar o corpo na calçada, de ver o sangue se espalhando em volta do corpo.
Só então o estranho pareceu se dar conta do que fez.
E fugiu correndo.
Tuca correu e gritou desesperadamente pelas escadas do prédio.
Levantou o corpo nos braços.
Nenhuma resposta.
Os braços balançaram flácidos dentro do abraço de Tuca.
A visão dos ossos esmagados o fez desmaiar.
Lembrou-se das paredes verdes de um hospital e finalmente de vestir suas roupas e sair caminhando a esmo pela cidade, entrando e saindo de vários ônibus, até se perder de si mesmo.
Antonio Carlos Cerqueira.
Era esse o seu nome.
Como um filme agora podia se lembrar do passado. Havia conhecido Íris na faculdade. Era ela que o havia ajudado a encarar os quatro anos de arquitetura. Filha de uma familia abastada, Íris tinha muito mais tempo para estudar que Tuca. Além de estudar ele tinha que cumprir estágio remunerado em dois escritórios. Seus pais não podiam ajudar com as mensalidades altas e ele se virava.
O que era uma bela relação de amizade acabou virando paixão. E daí para o amor foi rápido. Assim que concluíram a faculdade se casaram e, com exceção de algumas brigas por conflito de interesses eles haviam vivido cinco anos felizes.
Até o dia do assalto que tirou a vida de Íris.
Lembrar de sua morte era tão lancinante que Tuca tentava afastar as imagens movendo as mãos em frente ao rosto.
Tinha que voltar ao apartamento.
Mas ela não estaria lá.
Se lembrou de Nara contando que nunca voltou à casa que dividiu com o marido. Mas não era assim que ele se relacionava com a vida. Ele enfrentava.
No que estava pensando? Era ele mesmo que havia produzido aquela amnésia. Quem enfrenta a vida?
Definitivamente não era ele.
Aquela noite foi a mais longa de sua vida. As lembranças não pararam de pipocar. Por toda noite oscilou entre a necessidade de dormir e o esforço de se lembrar de todos os detalhes de sua vida.
De manhã contou a dona Nininha os últimos ocorridos, despediu-se dela e agradeceu muito pela acolhida. A mulher chorou como criança pequena.
Voltou a delegacia e relatou para o delegado os avanços com a hipnose e sua lembranças. Como se lembrava de tudo, agora era só garantir que poderia voltar para casa em segurança. Não seria necessário dar prosseguimento as inventigações de identidade. Agradeceu ao delegado e disse que naquele mesmo dia iria embora.
Com o gerente foi mais rápido. O homem ficou neurado. Só ouviu o "Estou indo embora" e percebeu que estava sem sem almoxarife novamente. Despediu-se de Tuca e já saiu gritando para uma atendente que fizesse outro cartaz de precisa-se. Tão simples como fora começar a trabalhar.
Pensou em ir até a casa de Nara mas um medo desmedido o arrebatou.
Como a poeira do seu sonho o medo penetrou seu corpo e sua alma.
Teve medo de perdê-la também. Não suportaria tudo novamente.
Decidiu ir embora sem se despedir.
E partiu daquele lugar como havia chegado.
De ônibus.
Norma de Souza Lopes