quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Abraço o acaso mas o infinito me apavora

Foi por causa do Le Spleen de Paris que eu passei a me questionar acerca do valor de me embriagar. Tais vertigens não são para mim o que é para todo mundo (talvez não todo mundo, talvez para a maioria das pessoas). Nunca experimento alívio do peso do tempo. Abraço o acaso mas o infinito me apavora. Me embriagar é perder o controle e envelhecer a velocidade da luz. 
Não que haja alguma moral nisso.
Sou capaz de desfrutar do álcool, da poesia e da virtude mas me entregar é como estar a me afogar. 
Passei um ano aprendendo a nadar mas toda vez que perco o pé me desespero. A ausência de chão me assombra. Dizem que é possível aprender sobre a água observando navios, sua flutuação, a luz do sol incendiando as águas debaixo do casco. Um navio é uma caixa flutuante, um exagero das leis da física. Nadar também é um exagero das leis da física. Todo dia acordo desejando nadar sem medo da distância entre mim e o fundo. Venho pintando peixes, inventando barcos, esculpindo moluscos. É só um quarto mas em breve vai parecer o fundo do mar.  Talvez fosse mais fácil aprender a me embriagar observando os navios. Mas minha terra não tem navios. 

Um verbete feminino para 2020

( nem tanto o 7 mas muito muito o 9)

Consistência
con·sis·tên·ci·a
sf
1 Estado, qualidade ou natureza daquilo que é consistente.
2 Propriedade de um corpo que apresenta, entre as partículas de sua massa, características de densidade, coesão, homogeneidade, resistência, compacidade, firmeza, aderência etc.
3 Elevado índice de dureza, esperança, solidez, viscosidade, compacidade.
4 ENG Estado de firmeza, resistência ou compacidade da massa fresca do concreto, antes que se inicie a pega ou enrijecimento.
5 Impressão tátil ou visual que causa o aspecto ou aparência de uma matéria ou substância da qual é feita a massa de um corpo.
6 FIG Estado ou qualidade de uma coisa que promete ter durabilidade, solidez, veracidade, coerência, credibilidade, estabilidade.
7 LÓG propriedade de um pensamento, teoria ou proposição que não apresenta contradição, isto é, cujo teorema ou fórmula seja, simultaneamente, afirmação e negação.
8 POR EXT, FIG Firmeza, força, solidez; coerência na exposição dos fatos ou dos pontos de vista.
9 PSICOL, SOCIOL Persistência, estabilidade de posturas ou opiniões por parte de um indivíduo ou de uma comunidade.
10 FIG, LIT, TEAT Coerência estrutural (do texto ou da encenação).
11 MAT Vcompatibilidade.

(fonte: Dicionário Michaelis)

sábado, 21 de dezembro de 2019

Nadando para Nova Zelandia - Diana Goetsch- Tradução de Norma de Souza Lopes

Uma ou duas vezes na vida você encontra uma mulher
através do qual você nadaria através do oceano. O que você está fazendo?
Seus amigos perguntam, enquanto você aperfeiçoa suas braçadas,
e você simpatiza com todos aqueles excluídos do amor.
Seu único obstáculo, o Pacífico azul -
Onde seu sol está se pondo, ela está se vestindo de manhã
e quando a amanhece ela vira e volta para te cercar
aumentando o volume para sua cidade,
Ela está fechando as persianas, tirando a maquiagem.
Se você fosse Gatsby, construiria uma mansão
em uma enseada longe do mar da Tasmânia
e você daria festas para tentá-la. Você não é
é claro - embora nada seja impossível,
- salvo a vida sem ela, então você nada.

Diana Goetsch é uma poeta americana, autora de oito coleções, incluindo In America (uma seleção do Prêmio Rattle Chapbook de 2017 ), Nameless Boy (2015, Orchises Press) e The Job of Being Everybody , que venceu o concurso aberto do Centro de Poesia da Universidade Estadual de Cleveland em 2004 . Seus poemas apareceram nas principais revistas e antologias, incluindo The New Yorker, Poetry, The Gettysburg Review, The Iowa Review, Plowshares, The Southern Review e Best American Poetry . Ela também é escritora e colunista de não-ficção, autora de ensaios sobre assuntos que vão da história do beisebol à ética médica e mensagens políticas. De 2015 a 16, ela escreveu a "Vida em Transição"no The American Scholar, onde ela relatou sua transição de gênero, juntamente com os problemas enfrentados pela mais nova minoria visível dos Estados Unidos. Suas honras incluem bolsas de estudo da National Endowment for the Arts, da Fundação de Artes de Nova York, do Prêmio Donald Murray de pedagogia da escrita e de um prêmio de carrinho de mão .

Abaixo a explicação de Daiana sobre o poema:

Este poema foi inspirado por uma mulher que conheci há cinco anos, que morava na Nova Zelândia. Na vida real, tínhamos muito mais obstáculos do que apenas "o Pacífico azul", então tenho certeza de que é uma metáfora. Comparar-me a Gatsby pode ter sido uma metáfora menos precisa; quando o poema apareceu em Nameless Boy, eu havia mudado de nome e estava vivendo como mulher. Garrison Keillor leu posteriormente no Almanaque do escritor, atribuindo-o a Douglas Goetsch, que não existia. Em seguida, foi publicado na Nova Zelândia em todos os lugares, em braille, sob o nome de Diana - minha primeira assinatura feminina. Em todo o fluxo, o que permanece inalterado é o meu amor apaixonado pelas mulheres. Esse amor - junto com a pergunta,
Quem iria querer estar comigo?
- era meu maior medo quando decidi fazer a transição.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

diferes

suspende tua sede
como quem
tem todo tempo
do mundo

ignora o agora inexorável
a triturar o tempo
entre os dentes

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

π

um poema que teime
em não dizer o urgente
óbvio e necessário
é um poema sintoma

perfurar os círculos
do incompreensível
finalmente acariciar
as  paredes do âmago
das coisas
sentir sua textura
calor e espessura
e constatar
não está lá

nem na inútil procura
de si no seio do outro 
esta fuga esquiva
do enigma vazio
da essência de tudo
é puro tempo perdido

de mãos dadas
acariciar as faces
do poema
até que desenhe
nas paredes da periferia
das existência
a alegria das palavras
livre, lar, só
e gratuita alegria
de dançar
em pole dance
ou passe dloube
eu e o poema 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

alavanca

o que me mantém
suspensa no ar
é o amor e a morte
salto e queda
num abismo que arde


não se mira duas vezes
a inclassificável
substância da nudez
festa do corpo

deveria ser impossível
cair em si
dada a ausência
de ponto de apoio


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

De um livro há muito esquecido saltou hoje um antigo bilhete de metrô. Observo-o atentamente e avalio se ainda seria possível usá-lo. Não dá, está vencido. Há muito não uso o metrô. Há muito não faço muitas coisas. A vida ficou mais fácil depois que compreendi e passei a aceitar a flutuação da existência.
Quando deixei o meu lar a dois anos atrás, apenas com uma mochila nas costas, caminhava deslizante sobre um piso flutuante que havia se tornado minha vida. Não era só a minha vida de mulher fugitiva, sob medida protetiva, era também o país e este buraco fundo em que nos metemos. Eu havia acreditado que o ovo da serpente não iria eclodir. De mim ninguém saia com fome, nem toda palavra encarnava.
Mas encarnaram. Firmadas estão as palavras calúnia, voraz, perversidade, fome, morte, pobreza, genocídio e tantas outras. A mentira que caiu sobre mim, sobre aquilo que eu tão ingenuamente chamava de honra, caiu também sobre todo o país. Não existe mais verdade, só recortes de imagens e palavras montadas para parecerem engraçadas, ou embaraçosas. Eu no entanto não me engano, não poupo ninguém: não há ingênuos, apenas convictos a cata da pseudo-verdades que lhes aqueçam.
A primeira vez que levaram meu celular, no viaduto Santa Tereza, eu ainda tinha forças para correr, ir ao chão, para lutar por aquele que era o meu simbolo de território. Como um antropólogo em nova terra nova, minha bolsa, meu celular eram minha casa. Ser roubada naquele dia foi ficar sem chão, sem lar.
Na segunda vez que me roubaram o celular, seis meses depois, na minha amada Praça da Estação, um certo Rafael, belo nome de anjo, senti que o mundo era um lugar perigoso e que os homens eram criaturas das quais eu teria que tomar distancia. Essa ainda me parece uma constatação acertada.
Hoje estou aqui, organizando estes livros na estante de minha nova casa, observando esse velho bilhete de metrô, deslumbrada com o que a minha vida se tornou. Cada detalhe da decoração, a escola, a 800 metros daqui, aquele trabalho que amo, esse vinho, esse queijo, esse "Melhor de mim" da Mariza tocando no celular, e aquela menina. Ah! aquela menina! 
Vou ler para ela o Neruda, ler para minha "menina morena e ágil", vou ler "para uma menina com uma flor" do Vinícius. Vou viver sem medo.
E se a vida me tirar de novo o chão, pinto asas em meus pés, que sou poeta, sou dessas.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

É que às vezes a gente escolhe se ferir. Por um não sei que de traumas que a teoria do afeto explica muito bem eu, que me chamo "a gente" quando ainda não estou pronta para assumir o protagonismo das minhas escolhas, observo atentamente sítios, pessoas e circunstâncias fora do alcance e dos desejo. Não que isso seja deliberado. De verdade, isso parte da minha incompetência em me julgar merecedora.
Teve aquela vez, você se lembra? Eu realmente achei que seria possível mas a vida tratou de arrastar meu coração no chapisco.
Não culpe a vida e não me poupe. Era uma uma escolha errada, como tantas outras, uma fantasia digna da imaginação de Gabo. 
Essa é a primeira vez na vida que desfruto o prazer absoluto da minha própria solidão. E é maravilhoso.
Portanto, não repare se eu parecer meio obsessiva. Venho descobrindo o quanto é fácil me amar. O quanto me tornei a mulher que eu queria ser e o quanto quero proteger esse encontro comigo mesma.
Você, assim como todos os entes que amo, são os poucos em que eu confio a compreensão.  Meus dias como mãe do mundo estão contados. Estou aprendendo a matar minha própria fome e não vou abrir a porta para quem me rouba a solidão sem verdadeira presença.
E sim, eu sei que é uma fase. Assim como antes, estou sempre pronta para ser outra, acolher o acaso, para  abraçar outros desafios e para existir em plenitude.

domingo, 1 de dezembro de 2019

vôo

há que se acordar e perceber
que estamos há muito
mirando o chão
desfrutando apenas
o gozo das memórias
das sombras
do voo em zênite
dá vida.

há que se descobrir
com que trama
haveremos de tecer
nossas asas de vida

domingo, 3 de novembro de 2019

Há uma lenda chinesa bastante difundida no Japão que indica que duas pessoas estão ligadas pelo fio vermelho do destino, o akai ito (赤い糸). 
Criado pelo deus lunar Yuè Xià Lǎorén, esse fio invisível seria amarrado aos tornozelos (China), ao mindinho (Japão) ou ao pulso (Índia) daqueles que estão predestinados a serem almas gêmeas.
Por motivos bem particulares amo essa lenda mas entendo se caráter pretensioso. Em tempos líquidos a ideia de alma gêmea é, no mínimo, ingenua. Nós mal somos capazes de encontrar a nós mesmos. Vivemos momentos sombrios em que tudo nos parte, tudo nos fragmenta, tudo nos despedaça. Por isso eu gosto de pensar que as possibilidades fantástica deste fio poderiam ser usadas como algo que nos amarrasse, que costurasse nossa alma despedaçada e nos constituísse inteiros. Uma vez inteiros, poderíamos caminhar em direção ao outro, num novo tipo de encontro. 
Valter Hugo Mãe, em seu " O filho de mil homens" descreve com profunda poesia, o que para mim, seria a forma ideal desse outro tipo de encontro: 

               " Subitamente, o rapaz disse que o pai precisava de encontrar uma mulher. O Crisóstomo ficou surpreso, não lhe ocorria preocupar-se mais com essas coisas, estava feliz. Mas o rapaz insistiu. Ia crescer e namorar, talvez casasse, e ao pai ficaria a faltar-lhe algo.
             O Crisóstomo respondeu que não lhe faltava nada, estava inteiro. E o rapaz pequeno disse-lhe que então ele devia passar a ser o dobro. Ser o dobro, disse. O pescador abraçou-o de encontro ao peito. Era o seu filho génio, o que sabia matemática e que sabia fazer caldo verde e domesticar os cães como ninguém. Era o seu filho génio, com as palavras que lhe faltavam, talvez com a coragem que lhe faltava. E o homem sorriu. O pescador sorriu, acabando de redobrar a esperança e julgando que outra vez poderia arriscar o amor.
                À noite, sozinho diante da sua casa, o mar todo apaixonado por si, o homem que chegou aos quarenta anos sentou-se novamente diante da inteligência toda da natureza. Estava ainda de coração partido, porque falhara nos amores e os amores podiam ser tão complicados, mas havia ficado mais forte, agora.
                Quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz.
                O pescador pensou.
                E disse à natureza que queria encontrar uma mulher simples, uma que gostasse de viver numa casa pobre com um pescador humilde que tem um filho que é um génio. Um pescador que, por loucura ou ingenuidade, fala baixinho com a areia. Para ser o dobro e em dobro ter o que fazer da vida e ter o que deixar ao filho.
                No dia seguinte, quando acordava para preparar o pequeno-almoço e mandar o rapaz pequeno à escola, o Crisóstomo viu pela janela da cozinha uma mulher sozinha, sentada com exactidão no lugar onde se sentara ele. A falar sem ninguém e para ninguém. Certamente ali só parcial. Uma mulher incompleta.
                Estava uma mulher a falar sozinha no seu lugar, na sua areia, diante do seu mar, numa brisa fresca que a manhã trazia, as cores ainda muito aguadas da timidez do sol e da limpidez da paisagem.
                O homem que chegou aos quarenta anos sorriu, e aquele sorriso já não era o mesmo do dia anterior. Já não era como nenhum outro do passado. Era o dobro de um sorriso.



Valter Hugo Mãe (2011). O filho de mil homens. Carnaxide: Alfaguara, pp. 25, 26.

domingo, 27 de outubro de 2019

dueto

não o poema
como ferramenta
que diga acerca
de um sítio, uma cerca
uma borda, um centro
um instrumento
para derrubar estátuas

mas um dueto de flores 
que reverbere 
de leve 
a beleza
daquelas linhas 
vermelhas
em seu dorso

sábado, 12 de outubro de 2019

Ainda somos. E a despeito das palavras encarnadas, seremos. Sempre. Obrigada Rodrigo.

"Interrompemos a guerra para uivar pra lua, porque, afinal de contas, ainda somos lobos.
E seremos mortos.
Nossos pálidos inimigos são incapazes de poesia e natureza, nos matam diante da beleza."

Rodrigo Teixeira

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Full hand

Na mesa da sala, minha irmã, minha mãe e minha filha organizam fotos polaróides antigas como quem embaralha cartas.
Exalam admiração, arrependimento e saudades como perfume.
Aridez, calor e fumaça e uma primavera tímida solapam intenções de ir a rua.
Minha filha ainda acredita na realidade das imagem.
Minha mãe um pouco decepcionada, mira aquilo tudo como um grande engodo. Ainda não se habituou ao envelhecimento. O que
 parece estranho para quem se habitou a inúmeras mudanças, a casa nova, ao marido novo (que de verdade é o mesmo que retornou depois de desaparecido por 23 anos).
Minha irmã se encanta com sua beleza nas fotos de praia e cachoeira.
Sentadas assim, emitindo sussuros contemplativos diante das imagens me fazem perguntar como conseguiram ignorar as adversidades camufladas nos pontos cegos, espaço invisível entre uma foto e outra.

A atividade se estende até a noite, quando as fotografias voltam para as caixas de sapato. 
Minha irmã fez bem em preservar essas fotos, elas vão existir por mais tempo que nós.

domingo, 1 de setembro de 2019

red pill

Acordar no domingo lembrando do triste filme pornográfico, aqueles meninos das entregas de comida e suas bicicletas, dormindo nas praças para estar no centro na hora de recomeçar.
Lembrar que passei os últimos anos gritando: 
- Ei, não estão vendo as engrenagens da grande Matrix?
Caminho todos os dias sob esse deserto do real lutando para não dizer, como os judeus - saudades das cebolas do Egito - pois sei que o mar de cuspe azul em que nadávamos no passado nunca me tiraria do lugar.
Não é por acaso que me lembro a redação enfurecida que escrevi em 1993 para um trabalho de história. Nela eu atacava Fukuyama e seu delírio de fim da história. Por causa dela eu, que era empregada doméstica,  chamei atenção de meu professor, recebi o convite de trabalho como estagiária no Arquivo Público Mineiro. Meu professor Afonso, diretor daquela instituição, me motivou acenando com a oportunidade, caso fosse aprovada na UFMG. Poderia dizer que foi mérito. Mas não. Foi apenas uma raríssima exceção.
O capitalismo não dorme. Os meninos não dormem. Eu não durmo. 
Ou durmo. Meia pílula por noite para não enlouquecer.

sábado, 31 de agosto de 2019

súplica

ouvis
a poesia entalada
em minha garganta
inflamada?
ela clama
dança comigo
mãos aéreas 
pés volutos

deslisa o toque
na pele
tu e eu
violoncelo

domingo, 25 de agosto de 2019

Gastávamos nossas noites de folga nos bares, jogando conversa fora. Uma pequena dose de tequila e já éramos filósofos, teólogos ou coisa que o valha. Naquela noite discutíamos a possibilidade de arrependimento dos anjos. Saulo e seu vasto conhecimento das escrituras afirmavam que anjos não podiam se arrepender. Tinha aquele tom cantante dos evangelistas, o que me fazia sentir que tudo não passava de uma cilada. Não sabíamos ao certo o objetivo da discussão. Sabíamos apenas que entre nós a Beatriz,a apanhadora de ondas das cordas de violões, sacava destas tretas de anjos e inclusive falava com eles. Quando nossas discussões ficavam acaloradas ela erguia o dedo e dizia murmurante: "Espere só cinco minutos e isso não vai importar mais". E tocava algo belo, enlevante. Nós na verdade não tínhamos paciência para os cinco minutos de silêncio mas a interrupção servia para desviar o assunto, para mudar nossa perspectiva. Beatriz não tinha muita tolerância para com o nosso cetismo. "Tudo que é verdadeiro é fatal e não duvida, pergunte à uma bala de revolver se ela duvida, Não duvida, não é mesmo?" Eu temia aquela sabedoria metafisica. Ninguém sabia. Nem eu tampouco pude contar. Havia uma bala alojada em meu coração. Não pude contar porque assim teria que revelar que eu, um dia quis morrer. "Uma bala duvida?" Eu podia dizer que sim, aquela alojada em meu coração passou anos sem se decidir se ceifava minha vida ou não. Mas isso eu não poderia dizer. A descoberta faria ruir a imagem sobre a qual em me sustentava desde então. Eu não ia contar nunca. Como poderia? Ninguém merecia a responsabilidade daquele susto. Mas a vontade de falar sobre ficava dando saltos dentro de mim. Bem ali, do lado da bala alojada. Era preciso calar essa vontade antes que ela acordasse o projétil. O violão não parecia ser suficiente. Nem as discussões acaloradas. Eu geralmente encharcava tudo com cerveja. Tamponar o amor à minha dor com álcool costumava resolver, afinal, aquilo era só mais uma forma de narcisismo que eu podia resolver em casa, no chão, observando meu reflexo numa poça de vômito.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

pele

a despeito das vozes
atávicas que sussurram -
não vá fazer pecar
um homem com sua
pele à mostra -

me visto
e me dispo
sem a modéstia
bíblica recomendada

do armário do quarto
meus vestidos de verão
sussurram suas desconfianças
os dias cinza de inverno -
um desperdício - dizem
meus decotes e meus
vestidos de verão

desfalecem de saudades
da sensualidade
quente de meu colo
do toque morno da pele
de minhas pernas

por eles corro os dedos
sob minhas dobras
textura de encontro
intimo comigo
o tecido vivo
e as digitais

domingo, 11 de agosto de 2019

E quando finalmente descobri minha voz, compreendi a promiscuidade da palavra. Quis arrancar a língua desde a faringe.

domingo, 7 de julho de 2019

Hoje eu só queria contar pra elas como eu acho tolo tudo isso de que não se pode amar o que é  igual.
Queria  dizer que as acho lindas, minhas meninas, tão únicas assim, unidas nesse devagar que é aprender a amar sem se desrespeitar.
Queria contar que assisti aquela ópera do Léo Delibes, Lakmé, e que durante o dueto das flores eu só conseguia pensar nelas, minha rosa, meu jasmim. Tão únicas e tão lindas...
https://youtu.be/Zm4HWjnwdWk

sábado, 6 de julho de 2019

Estou organizando meus poemas para enviar a uma editora de BH que se abriu para inéditos e venho sentindo uma sensação desconfortável diante do que eu percebi como repetição temática. Por mais que eu tente inovar a nova seleção, assim como nos dois primeiros livros, esse gira sempre em torno da falta de sentido da vida  e a inevitabilidade da morte, da sensação   de isolamento em relação a todo mundo, e da minha incapacidade de escapar ao gozo que mata e realizar meus desejos com  liberdade.
Gosto muito de uma frase da Frida Kahlo que diz:

"Eu pinto autorretratos porque fico sozinha com muita frequência, porque sou a pessoa que conheço melhor"

Uso essa frase para justificar o fato da maior parte da minha poesia ser sobre mim mesma mas confesso que às vezes esse exercício narcisista me incomoda. Gostaria de ser capaz de poetizar acerca do universo que me rodeia. 
No entanto compreendo meu exercício como um esforço de sobrevivência. Não é fácil aceitar que estamos mergulhados no caos do acaso (essa aliteração foi o Samuel Medina que me deu) e que a vida não faz sentido nenhum. Tampouco é tranquilo admitir que, com quase cinquenta anos estou mais próxima do dia que vou morrer. Pode parecer engraçado mas, com exceção dos momentos em que eu estava muito ferrada da cabeça, eu cheguei até aqui fingindo que tinha todo tempo do mundo. 
Quanto ao isolamento, esse é irreparável. Sofro de um desejo continuo de só esperimentar relações de afirmação, amor, colo. Isso no entanto conflita com as minhas contradições, incongruências e vicssitudes. Meus familiares, amigos e colegas de trabalho não são obrigados a ignorar a minha incompetência para o conflito e a adversidade e minha excessiva tolerância as formas de existir. Outro agravante são os centros de poder dos grupos. No geral cada grupo possui seu guru/lider em volta do qual os outros membros orbitam. Não sou boa com isso. Não tenho competência para liderar ou para ocupar esse lugar mas também não tenho disposição para orbitar apenas. Diante disso o isolamento deveria ser uma saída confortável. Mas advinhem, a solidão me adoece. É uma circunstância insolúvel, assim como as outras que já citei, sobre vida e morte.
O terceiro item dessa lista, a tríade gozo/desejo/liberdade vocês já podem imaginar. O gozo existe em minha vida como um sintoma, a compulsividade: comer, beber comprar são válvulas que diminuem a ansiedade que todas as outras coisas me provocam. Separar isso do que é real desejo, vontade de potência, tem me custado a vida toda. Tem bem pouco tempo que eu aprendi a me desvencilhar da culpa para escolher ser livre e realmente atender os meus desejos. E isso ainda é bem incipiente e acontece justamente quanto eu escrevo poesia. É nela que eu peneiro, que eu tiro de dentro, que eu observo. A poesia tem sido para mim um simulacro de companhia, de vida, de sentido e de liberdade. E é a poesia que tem me ajudado a suportar a eminência da morte.
Isso não é um pedido de desculpas. É só um aviso. Continuo a mesma nesse potencial terceiro livro. 

sábado, 29 de junho de 2019

PINTA-ME UMA MULHER PERIGOSA - Tatiana de la Sierra /Tradução de Norma de Souza Lopes

pinta-me uma mulher perigosa
uma que coma cobras
uma que ladre
que penteie a barba
uma mulher com a vagina violada
com as tetas caídas
uma que xingue  e goze
uma que tenha baratas aladas
ao lado da cama

pinta-me ela para eu poder mirar-me no espelho

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Tenho que escrever um poema - Tatiana de la Tierra tradução de Norma de Souza Lopes

o dia todo tentei escrever um poema
porém tu deitaste sobre as teclas
e se apagaram as palavras
e inventaste otras`11t0
o xxxxxxxyyyhsssssssssss
`1````1` qqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqqq

o computador se queixou
quando puxaste
meus cabelos 
me fizeste cócegas 
te sentaste sobre minha munheca
deixaste uma trilha
de saliva
subindo minha coluna vertebral
mordeste o mouse

tenho que escrever um   poema
por que não entendes isso?
se me deixar em paz
posso cuspir palabras
QUE TE DIGAM
DESEJO~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
PORém me segue fodendo as teclas
metes tuas  patas em meu peito
tua língua em minhas orelhas

meus dedos intentam
concentrar
porém
tuuuuuuuuuuuuuuuuu’
dizes
O POEMA ESTÁ DENTRO DE TI
deixa isso
e com teus dedos
me tira
metáfora
ritmo
sinfonia
ganas
não literárias

Poema de Cristy a Tatiana de la Tierra - Tradução de Norma de Souza Lopes


Ela me deu permissão
Ser amada ao conhecer e desconhecer meu ser
Para olhar pela janela para os carros que passam, para saborear o doce sabor de sua essência sobre a minha língua.
Ela me deu água para minhas sementes e agora as flores estão brotando da minha cabeça e do fundo dos meus pés.
Ela me deu permissão para estar segura
Para ser embalada para dormir
Ela me deu horas de calor
Envolta em seus braços, choros de criança e sonhos de criança
Ela me deu permissão para amá-la, para compartilhar em voz alta a visão de flocos de neve caindo no ar da meia-noite
Ela me deu permissão para me render suavemente e permitir em seu amor e sua capacidade de cuidar
Ela me deu permissão para ser apenas
Ela me deu, ela me deu, ela me deu, eu.


Recomendo também conhecer a obra e a biografia de Tatiana de la Tierra

Lá do https://labloga.blogspot.com/2012/08/homenaje-tatiana-de-la-tierra_5.html

domingo, 23 de junho de 2019

Não me olhe como se eu ainda fosse a mulher que me tornou essa ruína, ou se esses versos que escrevo fossem o jorro de uma torneira aberta.
Em algum lugar existe uma pequena fonte d'água, uma mina e é dela que tiro poesia.
Ser eu mesma é muito difícil. Não há placas em neon avisado qual a escolha oferece maior chances de me trazer alegria. E mesmo que ouvesse, há em mim uma essência felina que segue irracionalmente todas as luzes.
Não é como se de repente eu desistisse de viver. Há dentro de mim uma fome feroz pela vida. É ela que pede socorro quando meus monstros me dizem "acabe com tudo, você não serve para existir nessa máquina trituradora de mentes que são os dias de hoje."
Na verdade eu gostaria de flanar sozinha, dançar e ensinar literatura.  Mas tem  isso de se apaixonar e é meio que uma compulsão por interlocutor. Queria ter com quem trocar um olhar de cumplicidade quando eu sinto vontade de derreter ouvindo o poema do Jazz que a Piê fez para a mina (musa?) dela. Alguém com quem ter um tratado de paz. Alguém que não fosse uma ameaça à essa voz narcísica que me consome e que dissesse  "você está errada Norma" sem me fazer sentir a alma sequestrada. Alguém que entrasse, a despeito dessa placa em meu peito "estamos abertos mas a porta é pesada".
Veja como eu escrevo hoje, percebe como as sombras estão silenciosas? Eu me orgulho da família que construí, dos amigos que fiz e principalmente me orgulho profundamente da minha disposição para amar.  Por isso pare de se preocupar, qualquer dia desses eu acalento essa necessidade compulsiva por amor. Afinal, veja como é grande o meu amor por mim, essa imponente ruína.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Procuro desesperadamente uma resina que preencha essa fenda aberta em meu peito, algo que cole as imagens narcísica que nem mesmo sei quando  estilhacei, se é que fui  eu mesma que quebrei.
Olhando para fora todos parecem tão convictos de si - vejam como acredito em mim - parecem dizer.
Não encontro forças para sustentar aquele antigo pacto no qual decidimos inventar uma história, acreditar nela e vivê-la  todos os dias até que se tornasse verdade.
Era para ser divertido, Olhar nos espelhos prateados do quarto ou da sala de jantar e me admirar do quão bela me tornei. Ou olhar no espelho negro do celular e constatar que eu realmente sou muito inteligente e que minhas palavras são sábias, que meu trabalho  é fantástico e que eu  realmente domino a imagem que venho produzindo.
Não acho uma liga, nada parece ter força de resina para preencher meus buracos e tenho sido injusta com meus amigos e familiares, esperando que eles possam fazer isso por mim.
Gostaria de poder  culpar esses tempos  que parecem não mais suportar que se façamos juntos coisas íntimas como sentar-se diante  de qualquer altar e rezar silenciosamente. Ou, também em silêncio, permanecer por três minutos diante de um morro úmido de neblina.
Mas preciso ser honesta o suficiente para admitir que tudo morre antes dentro de nós. Um mundo doente só acha eco em almas enfraquecidas como a minha está agora.
Você se lembra quando, mesmo diante de toda violência e escassez, achávamos alegria  em tomar banho de chuva, caminhar entre os vales erodidos pela enxurrada. Ou quando você pegava em minha mão e attavessávamos a rua para ver a lua?
É triste sentir que dentro de mim nesse momento há uma recusa em irradiar. Calou-se aquela voz potente que dizia a todo tempo -vai melhorar.
Acho melhor tentar dormir. Somada aos efeitos de uma noite mal dormida, essa tristeza pode ser algo perigoso.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Tem dia que eu fico brava com essa minha necessidade absurda de amor. Gostaria de ser mais plena com a minha própria estima. Mas eu amo amar minha família e meus amigos.
Tive que deixar de amar algumas pessoas e isso sempre me pareceu uma perda. Espero que eu possa continuar amando meus amigos, a despeito de todas as nossas contradições.
Quase trinta anos de análise iniciada e interrompida e algumas constatações:
- não há restituição para os nomes malditos recebidos por nossos pais. Eles não são mais os mesmos;
- se nós mesmos não nos renomearmos o mundo irá fazê-lo. E não será generoso.
- algumas metáforas para análise funcionam bem. Um poço de onde se tira pedras até chegar ao fundo, uma fonte inesgotável de onde se tira água etc. Prefiro a segunda por ter percebido que o conteúdo produzido em análise, as simbolizacões, para mim, são tão fluidas quanto a água. Sempre que penso que esbarrei em uma construção de sentido que poderia 'fechar Gestalt" ele escorregava para outro lugar. Pouquíssimos significados construídos por mim em análise se aproximaram da solidez de uma pedra e definitivamente essa construção não tem fundo em mim.
- e finalmente, sou grata a cada símbolo, fantasia, imaginário que construí ao longo desses anos. Sou uma pessoa bem menos lacunada, fragmentada e  quebrada em decorrência dos sentidos que fui construindo em análise. Apesar de provisórios eles são eficazes em preencher as minhas brechas e colar meus cacos.

domingo, 9 de junho de 2019

submissão

sorver delicada pequenos pontos
a textura arenosa da mucosa oculta
estirar os lábios com doçura
e na língua infiltrada
sentir por alguns segundos
o fluido espesso, seu corpo 
completamente prisioneiro

quinta-feira, 6 de junho de 2019

nouveauté


Alguns filmes, livros e canções  afirmam que é melhor amar, mesmo sem ser amada.  Não estou tão certa disso.
Uma mulher de quase cinquenta anos está muito consciente de seus erros. Isso não significa que está pronta para corrigi-los.
Não era tão bela que tornasse imperativo  o segundo olhar. Era uma beleza leve, lisa, túmida, gostosa de pegar.  Cultivava amores impossíveis só para não se dar ao trabalho de negociar suas crenças e valores, como  assim exigem as relações amorosas.  Mantinha como regra um simulacro de hostilidade para disfarçar o humor vulnerável. Quis lhe contar que não havia nenhum charme em odiar, mas seria inútil, não se toca em leitmotivs.
A primeira vez que morri por ela quis escrever uma carta contando porque queria desistir  do horror   desse mundo.  Sem nenhuma doçura parecia impossível continuar. Não escrevi. Não desisti.
Olhando para o passado percebo nos versos incompreensíveis daqueles dias o rastro da falta mais importante, entreguei minha poesia de graça: "quem dá o que tem a pedir vem," diria mamãe.
Cada palavra  carregava  minha força, o toque das mãos, o gesto  de escrever a alma no papel. E o que ficava para mim?
Quase morta de novo, pela enésima vez, debaixo dessa imensa sombra que o império de thanatos impôs sobre esse país,  desejaria um outro exercício, outra sintaxe, dedos longos acionando minhas cordas mais sonoras.
Queria ser capaz de me escrever uma poesia de amor tão condescendente quanto as que lhe dediquei.
Vou precisar outros livros, outros filmes, outras canções .

segunda-feira, 27 de maio de 2019

a vida não me deve nada

ser jovem
acordar cedo
no domingo
sem ter dormido
e ainda assim brilhar
emulando o sol

ser jovem
repleta de vida interior
sem a dor
dos silvos das balas
em meus ouvidos
dizendo
" a vida é só isso"


envelheço
como todos
ao meu redor
e só será
o fundo do poço
quando nada disso
importar

sábado, 25 de maio de 2019

casa é onde pouso meu coração

eu
que a todas
aprendi a chamar de casa
eu que tive
e ainda terei moradas
algumas, lares o
outras, habitação
ou mesmo pocilgas
sempre soube gozar
da volta ao lar
do desabar sobre o leito
como uma desforra a
esse mundo caduco

quinta-feira, 23 de maio de 2019

que não vem

que há por aí alguém
que me despiria só de olhar
e me faria  ferversó em tocar
é fato
não compreendo porém
porque se demora tanto
sabe acaso que perde tempo
e desperdiça o amor?

terça-feira, 21 de maio de 2019

pasodoble

Finalmente compreendo que não há coincidência nesse padrão de rejeição que experimento desde a infância. É uma escolha meticulosa pelo que não está pronto para acontecer, como alguém que cutuca uma ferida quase seca para que volte a sangrar. Há um gozo em mergulhar na tristeza, chorar diante do espelho, imaginar o próprio funeral. Como se só fosse possível exercer minha potencia a partir do banzo da autocomiseração. Que ganho haveria com o exercício deliberado da infelicidade? A felicidade já me ensinou alguma coisa? Suspeito que a alegria só me tira coisas, mesmo assim insisto. Não se escapa à tristeza do desamor sem transformar a rejeição em poesia. Transformamos desamor em metáfora como quando olhamos água condensada e vemos beleza no azul do firmamento ou quando miramos nuvens, o arco-íris. Também o fazemos com o grito de fome dos pássaros transformando-o em música. Um desperdício de infelicidade, posso dizer. Diante de mim um menino que aprendeu a amarrar os sapatos sorri, ainda não contaminado pelo medo de fracassar. Deixo a leveza disso fazer escorrer minhas sombras e revelar minhas transparências. Mais um passo nessa dança entre alegria e tristeza. Talvez essas pequenas coisas me devolvam o desejo pelos amores possíveis. Norma de Souza Lopes

quinta-feira, 16 de maio de 2019

sem raiz

Nesses tempos de negação de identidade pessoas como eu acabam ocupando um não-lugar, uma fronteira que os grupos ideológicos proíbem de ultrapassar (seja ele branco ou negro, rico ou pobre, central ou periférico, hétero ou gay, jovem ou velho, intelectual ou doente mental etc.) No começo doía porque eu pensava que não era nada, de lugar nenhum. Mas venho entendendo que quem escolhe isso sou eu. E eu escolho ser tudo. Ocupar todos os lugares com os quais me identifico. Tudo e todos que não sejam desumanizadores. E isso é libertador.

hoje não

acordar nesse mundo sem verdade não há respostas fáceis não entrar em pânico amar, mas não como uma mamífera não ser uma loba antes de cuidar da própria fome ser subversiva e escrever poemas que falem a verdade sem perder a imaginação em tempo de tanta mentira ser a subversão

segunda-feira, 22 de abril de 2019

OUTRA FORMA DE TERMINAR UMA RELAÇÃO Demetria Martínez Tradução Norma de Souza Lopes

Se não pode arrancá-la Pela raiz, remova-a do sol, deixe de regá-la. *

CONSUELO Demétria Martinéz Tradução Norma de Souza Lopes

Agora será Connie, como cortar o cabelo demasiado curto, mais fácil de pronunciar, disse seu professor do jardim de infância. Vai demorar anos da vida de Connie para que seu nome volte a crescer, para que se olhe no espelho e ame o que vê. * Demetria Martínez

terça-feira, 16 de abril de 2019

melodrama

desejo como o roçar de asas de um anjo no escuro seus beijos mas sou só só tenho o nó de gravata essas lágrimas em volta do meu pescoço (a despeito d tristeza são tão belos esses olhos molhados no espelho)

segunda-feira, 15 de abril de 2019

recaida

se te parece que não sou de ninguém é que pela primeira vez sou minha há um pouco de benção e maldição em estar sozinha vai doer quando eu deixar de esperar suas mãos em meu rosto carícia ou desgosto? um abismo entre o que você é e o que preciso porque eu não desisto? sabia que essa obsessão estava lá me afogando em você quando caí a primeira vez? seu cheiro, seu cabelo as sutilezas do seu rosto parecem únicos e é isso que são tanto tempo e ainda não aprendi isso de ser gota em chapa quente arder sem tocar nem sei porque tento avisar mas falta pouco para eu abrir as portas e deixar outra pessoa entrar ela está do outro lado observa curiosa minhas feridas há um passo de entrar em minha vida mas, se você quisesse que importa que fossem falsas as oito batidas do meu coração as oito batidas do seu coração real são essas canções que escorrem o que em minhas pernas escorre quando seu fogo me queima era para aprender desde cedo que a palavra junto tem vinte e cinco significados

Aparte

Você espera imóvel, sabe-se lá o quê o olhar confuso, susto ao me ver. Atravesso sorrindo o espaço que nos separa. Te abraço. Não era para eu estar ali. Coisas que não dizemos bóiam sobre nossas cabeças e naquele encontro leio a forma mais feroz de verdade que o amor pode revelar. Posso continuar a desperdiçar poesia, chamar, chorar, enlouquecer: não vai acontecer.

expectativa

uma esquina
de onde ainda se pode
pegar ou largar
aquela vontade
de se falar todo dia
de ligar


aqueles minutos parados
olhando o tempo
imaginando um chá
um café
ou qualquer coisa assim

e na frente da casa um jardim

colete salva-vidas

a alegria dos versos blindados suvenires congelados que resistem à minha morte por amor à morte do amor a ilusão de que eu poderia escolher

não fere se é amor

era um encontro e você sorria parecia feliz na cena, nem era eu mas não doeu

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

SOBREVIVENTES Rosa María Roffiel Tradução de Norma de Souza Lopes

Para minhas amigas
E também para as demais
Eu conheço tua loucura porque também é minha

Somos loucas rebeldes
loucas de estar vivas
loucas maravilhosas
ultrajantes, floridas

Ovelhas negras
descarriadas sem remédio
vergonha da família
peças de seda fina
amazonas do asfalto
guerrilheiras da vida

Loucas de mil idades
cheias de raiva e gritos
buscadoras de verdades
loucas fortes
poderosas
loucas ternas
vulneráveis

Cada dia uma batalha
uma norma que rompemos
um milagre que cremos
para poder seguir sendo

Loucas sós
tristes
plenas
Mulheres loucas, intensas
loucas mulheres certas.

de Corramos libres ahora, 1986/1994
Reeditado por LeSVOZ, México D.F., 2008

Daqui ó https://libroemmagunst.blogspot.com/2019/01/rosa-maria-roffiel-3-poemas-3.html

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

ISSO SIM É QUE NÃO Rosa María Roffiel Tradução de Norma de Souza Lopes

Eu posso tudo menos isso.
Posso decair um pouco
permitir que a nostalgia me aborde
avaliar a ideia de me suicidar
talvez até chorar aos gritos
tomar duas tequilas
ou ficar na cama até uma da tarde.
Tudo, menos me sentar
e esperar junto ao telefone.

de Amora, Col. Sentido Contrario, Hoja Casa Editorial, México, 1999

Daqui ó https://libroemmagunst.blogspot.com/2019/01/rosa-maria-roffiel-3-poemas-3.html?m=1

PEÇA VOCÊ UM DESEJO Rosa María Roffiel Tradução de Norma de Souza Lopes

Uma vez quis ser homem
para casar-me com minha irmã
que já passara por três divórcios.
Para amar às minhas amigas
que em cada relação morrem um pouco.

Quis ser homem
para fecundar seus ventres
não de filhos
mas sim de poesia,
vinho tinto
relógios parados
unicórnios azuis.

Para dizer a Josefina
quanto admiro sua forma de se entregar
para escrever a Rosi
essas cartas que nunca chegam
chamar Pilar por telefone
que espera tantas tardes
cheia de caricias prolongadas
o espaço de Beatriz
que vive só e tem
medo de tremores.

Queria ser homem,
para amar a todas
e não sentir mais
o frio de suas lágrimas
em minha camisa
nem vê-las apagar-se
nem presenciar
em seus ataúdes de trinta anos.

Queria ser homem
para convidá-las
a navegar o universo,
bailar descalças
porque a vida
é o presente mais precioso
levá-las pelo braço
até uma cama
onde não tenham que fingir orgasmos.

Sou mulher
e ainda que eu possa
compartilhar com elas a poesia,
escrever-lhes cartas
chamá-las por telefone,
encher-lhes de carícias prolongadas,
navegar o universo,
bailar descalças
secar seu pranto,
tocar sua alma

não é suficiente.
não lhes alcança.

Porque, desde meninas, aprenderam
que os homens são
um prêmio
que elas tem que amar
sem se importar

se eles as amam.

de Corramos libres ahora, 1986/1994
Reeditado por LeSVOZ, México D.F., 2008

Daqui ó https://libroemmagunst.blogspot.com/2019/01/rosa-maria-roffiel-3-poemas-3.html?m=1