quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

MALUCA MENINA VENENO


A escola teve papel fundamental na constituição do meu caráter. O que eu escolhi ser e o que eu desisti de ser se deve a maior parte das experiências que tive na escola. Eu era a mais velha de três irmãos e isso tinha implicações importantes.
A separação de meus pais culminou em inúmeras mudanças e fatalmente no atraso escolar.  Eu e meus irmão éramos sempre os mais velhos da classe. A infância não era grande coisa com toda aquela pobreza mas nós gostávamos e  queríamos ser mais velhos. Assim podíamos trabalhar e comprar o que a mãe não podia dar. 
Ser mais velha na quarta série me fazia ir para a escola de saltos altos, usar batons vermelhos cintilantes. Daí para os apelidos era um pulo.
Meio-quilo-de-batom.
Menina veneno.
O segundo apelido ganhei por dançar musicas do Richie no recreio, na quinta série. Era o meu momento de brilhar. Eu conhecia bem a coreografia e a escola fazia rodinha para assistir. Mas a maravilha eram os alunos da oitava série fazendo fila para pedir meu autógrafo. 
Demorei anos para entender a piada.
Em tempo de denúncia ao bullying me constrange dizer que eu era vitima e algoz em meus tempos de fundamental. Mas não havia como ser de outra forma. Éramos feios, magros, sem pai e não muito brilhantes. A escola não era nosso melhor habitat.
Só sobrevivemos àquela selva porque nos comportávamos como malucos. Aliás esse era o meu apelido na sétima série.
Maluca.
Eu e meus irmão reagíamos aos ataques cruéis daqueles que adolesciam conosco. Lutávamos como ensandencidos.  Estávamos nas brigas da porta da escola com pedras, paus ou  tchacos, gritávamos e batíamos em tudo e em todos para demonstrar força e sermos reconhecidos. Era o que tínhamos. 
Isso funcionou bem enquanto estivemos os três juntos. Sozinha e em outra escola tive que construir outras estratégias.
No começo do ensino médio estava tão deprimida que ninguém se aproximava. Era sempre o chororô na sala da orientação. Isso até a velha Norma briguenta reaparecer. Eu agredira um insignificante que passava tampinha no quadro para irritar a turma.
Me deram o ultimato. Eu teria que mudar.
Num ato de solidariedade e amor à profissão meu professor de biologia me indicou uma amiga psicanalista e isso de certa forma mudou os rumos de minha vida.
Procurei-a na semana seguinte. Se chamava Izabel. Um menina de 26 anos, miúda e amorosa me ensinou que eu poderia arrancar a minha dor, olhá-la profundamente e guardá-la onde ela não doesse mais. Eu, que  usava todo o salário de babá para pagar as sessões, deixei de querer parecer adulta e me tornei adulta. Ela me fez entender que o céu era o limite. Eu poderia ser o que escolhesse ser. Escolhi ser pedagoga.
Voltei para dentro da escola para me redimir e me curar de toda violência que impingi e sofri. Dos tempos de "Maluca" trago uma certeza. Evito usar a força para me proteger e acredito que como professora, a qualquer momento, posso estar dando aquela palavra que mudará a vida de meus alunos.
É como lançar sementes.

Norma de Souza Lopes



Um comentário:

  1. Poxaaaaaaaaa, que texto gostoso de ler! Olha só... como a escola tem papel fundamental em nossa formação como gente! Pessoa! Caráter! Muitas vezes, em tantas famílias "Brasilis", educação não se aprende em casa e sim na escola. Não deveria pois, educação tem que vim de casa, da família, dos ensinamentos dos nossos próximos mais próximos. Escola... escola... Bons tempos!!! Beijão...
    By Marah Mends

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