segunda-feira, 30 de julho de 2012

Coração à venda

Quando li esse poema alguns dias atrás me impressionou a força com que ele entrou em mim. Na hora não soube porque mas tratei de investigar

Conversando com Ricardo Aleixo na última Oficina PALAVRA FALANTE: O JOGO DA POESIA contava sobre  meus últimos arroubos poéticos e recebi dele uma suave recomendação de não dividir com quem não tem interesse pelas mesmas coisas. Na hora me lembrei do poema e hoje percebo que a pessoa que o eu-lirico aponta sou eu

CORAÇÃO

Algumas pessoas vendem o sangue. Você vende o coração.

Era isso ou a alma.
O difícil é tirar a porcaria lá de dentro.
Uma espécie de torção, como tirar da concha uma ostra,
sua coluna um punho,
e então, upa! ei-lo em sua boca.
Você se vira parcialmente do avesso
como uma anêmona do mar tossindo uma pedra.
Há um chape curto, o ruído alto
de entranhas de peixe caindo num balde,
e lá está ele, um imenso coágulo brilhante vermelho-escuro
do passado ainda vivo, inteiro no prato.

Passam-no ao redor. É escorregadio. Derrubam-no,
mas também o experimentam. Áspero demais, um diz. Salgado demais.
Azedo demais, diz outro, fazendo careta.
Cada um é um gourmet momentâneo,
e você fica ali ouvindo tudo isso
no canto, como um garçom recém-contratado,
a mão reservada e competente na ferida escondida
no fundo da camisa e do peito,
timidamente, sem coração.



(Poema de Margaret Atwood, aqui na tradução de Adriana Lisboa)


Logo que comecei a escrever levava meus poemas para parentes e amigos apreciarem. Isso para mim era como tirar do peito o coração. A postura de garçom, esperando aprovação também era a minha.
Da maioria escutava "não gosto desse tipo de poesia", "você precisa ser mais universal, tá muito mulher", " é muito intimista"  " por que não diz de um jeito mais simples" e outros comentários do gênero.
Acabei restringindo minhas demonstrações de poesias a espaços onde, se alguém lê, não comenta. E quando comenta fala mais de si que do que eu escrevo. Uma fala exposta também a julgamentos. A maioria evita isso. E eu gosto. 
Escrevo por absoluta necessidade. Não é algo a que eu possa me furtar. Sei que ainda preciso melhorar muito mas prefiro aqueles que contribuem comigo mostrando a poesia que faz, falando sobre o seu processo produtivo. Qualquer tradução do que escrevo é particular e individual. Cada um lê o quer ou é capaz de ler. Toda poesia é boa para algum leitor. 
Apesar de aprendermos na escola (de maneira errada diga-se) que quadrinhas são poesias primárias conheço gente que ama ler quadrinhas, conheço gente velha nessa estrada da poesia que se diverte escrevendo quadrinhas.  A questão não é qual poesia, mas para quem.
Fiquei pensando nisso no sábado quando recebi de Bruno Brum seus livros. Eu estava comprando seu coração e sabia disso. Como será que ele se sentia? Será que ele também era o garçom?
Não posso dizer que deixei de ser o garçom do poema de Margaret Atwood. Ainda estou aqui com essa cara de paisagem, cobrindo elegantemente a ferida do peito com as mãos. A sorte é que agora tenho predecessores delicados a me mostrar gentilmente o caminho. Obrigada Ricardo Aleixo pela recomendação e  pelo cuidado com que nos passa conceitos tão preciosos como corpor e voz, música, harmonia, partitura etc. Obrigada Bruno Brum pela poesia, Mariana Botelho pela identidade poética, Paulo da Luz Moreira pela habilidade como prosador, e tantos outros que ainda não se materializaram diante de mim mas que, por causa dessa maravilhosa interatividade, tenho conversado um pouco. 
Mesmo que eu não volte a falar sobre isso com vocês quero deixar registado que estão contribuindo para minha constituição como poeta. 

Norma de Souza Lopes

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