Em "Poesia e escolhas afetivas:
edição e escrita na poesia contemporânea" Luciana di Leone propõe, a
partir da episteme
do afeto, um recorte acerca da poesia brasileira e argentina nos anos 1990 e
2000. Para Leone, o poema é uma escrita que solicita o leitor, que pede a sua
entrega. Dessa forma, produz afeto e uma relação entre dois corpos.
Poderíamos então dizer que, afinal de contas, a palavra poética implica
uma transitividade (...)Portanto, o leitor não pode se subtrair, ignorar a
própria presença frente ao texto; deve, pelo contrário, tomar posse, possuir o
poema, incorporá-lo, sabendo que, nesse movimento, ao mesmo tempo que abre
(revive) o corpo (morto) do poema, se abre à subjetividade que o enfrenta” (2014, p. 11)
Também o afeto, neste contexto, é uma
categoria para analisar as estratégias de disseminação da poesia e investigar
as práticas de ler, escrever e editar, bem como pela questão do relacional,
isto é, pelos modos de “viver junto” (2014, p. 12) e a organização de
coletivos artísticos. Para tanto a autora recorta um conjunto de obras poéticas
dentro da grande área " poesia contemporânea" para dar conta do que
ela chama de transitividade poética, em que escrita e leitura se relacionam a
partir da ideia de afetação, de modificar e ser modificado por aquilo que se lê
e se escreve. Embora ela ressalte que essa transitividade e afetividade não
sejam características apenas da poesia contemporânea, brasileira ou argentina,
justifica parte dos trabalhos poéticos produzidos nas últimas décadas no Brasil
e na Argentina.
se constrói explicitamente a partir de uma cena de leitura que alimenta
as escolhas afetivas e alimenta a continuidade dos afetos produzidos e, ainda,
explicitam essas escolhas como as que guiam seus projetos ( 2014, p. 12).
Em quatro capítulos, a saber "Pensamento contemporâneo: o afeto em
pauta", "Escolhas afetivas e edição de poesia",
"Poéticas do afeto endereçamento citação e nomes próprios" ,
"Repensando as escolhas afetivas: por gesto crítico" a autora observa
que, se por um lado há uma ausência de representação política e projeto
estético na geração que emergiu entre os anos de 1990 e 2000 por outro há a
necessidade de lançar luz sobre os diversos vínculos criados entre o leitor e o
poema, entre a leitura, a escrita e reescrita da produção contemporânea,
encabeçada pelas relações construídas entre poeta, editor, leitor e crítico.
Talvez o poema e a sua situação de publicação possam ser pensados
como sintomáticos de um modo de editar, escrever e ler poesia que ganha
força na produção poética do Brasil e da Argentina das últimas décadas. Modo de
editar, escrever e ler que investe no que a edição, a escrita, e a leitura têm
de prática coletiva, na qual o autor se dissemina, deixando de ser garantia do
sentido e dono do escrito, deixando de ser garantia do sentido e dono do
escrito, deixando de apelar a uma voz própria, e articulando diferentes tempos,
espaços-vozes de forma não hierárquica nem identificatória. (2014, p.14)
Tomando como corpus a produção
literária poética publicada em revistas, coletâneas, blogs e youtube (Cine
Paissandu para Aníbal Cristobo). Leone reconhece na poesia desse
tempo um "affectiveturn"' ou “virada afetiva”, que teria se materializado
na criação de variados “espaços de encontro e produção” de poesia, o que inclui
editoras, oficinas, catálogos, coleções, revistas, antologias, além do trabalho
de cada poeta compreendido como espaço afetivo (2014, p. 64). Discorre como as sociabilidades
einter-relações afetam a produção poética atual. Essas revistas e
coletâneas publicadas física e virtualmente agrupam entre seus autores um
conjunto de poetas que se uniram mais por conhecerem-se uns aos outros do que
por algum outro fator orgânico. A partir de reuniões informais, que ocorriam
por meio de uma divulgação não convencional, ganhou corpo uma produção poética
que traz em comum uma série de características que, segundo di Leone, expressam
essa sociabilidade nascida das “escolhas afetivas”.
Nesse sentido, segundo a autora, essas
produções não podem ser observadas sem se levar em consideração a importância –
identificada também em campos como a filosofia, a sociologia e a crítica de
arte – da questão do relacional, dos modos de viver junto, dos coletivos
artísticos, “com os seus desdobramentos na reflexão sobre a grupalidade, a
comunidade, as aproximações e as distâncias entre o eu e o outro, e os efeitos
e afetos” (2014, p. 20).
No primeiro capítulo, “Pensamento
contemporâneo: o afeto em pauta”, Leone identifica uma espécie de “espírito de
época” em que as escolhas afetivas são basilares tanto na poesia contemporânea
quanto em outras áreas. Afeto aqui é tido como “afecção e como sentimento, para
referir e insistir na sua dinâmica relacional, pela qual os sujeitos e
discursos implicados são vulnerados, desfigurados e reconfigurados por essa
força que varia de forma contínua” (2014, p. 20). Ou seja, ela entende afecção
e afeto como semelhantes por entendê-los como envolvidos na concepção de escolhas
afetivas (2014, p. 20).Por serem e exteriores, tangíveis, ainda que as
fronteiras interior e exterior não sejam determináveis (2014, p. 20).
Para construir sua argumentação Leone
se apoia teoricamente emSpinoza e Deleuze (considerações acerca do afeto),
Giorgio Agamben (o que é contemporâneo), Jean-Luc Nancy (comunidade
inoperante), em Roberto Esposito (reflexão sobre comunidade), Manuel Castell
(sociedade em redes), Nicolas Bourriaud (relações inter-humanas nas artes), Mario
Perniola (pensamento sobre o sentir como já sentido), Florencia Garramuño
(expansão do literário).
Com esse aporte Leone argumenta a
partir do sentir, dos relacionamentos que permeiam a escrita de poesia e
crítica na atualidade e também aponta para a necessidade de uma nova crítica,
que em lugar de observar os objetos como fechados em si, devem percorrer os
fluxos que os atravessam (2014, p. 40). Segundo Leone:
Seja nas propostas literárias expansivas, seja na atitude crítica ou
nas modulações do pensamento contemporâneo em diversas disciplinas, o que fica
mais e mais evidente é o interesse contemporâneo, o imperativo ético, de
mostrar os contatos, as afecções e os afetos, de pensar para além das
fronteiras genéricas e disciplinares, mas sem deixar de ouvir as singularidades
que elas possam ter. Ler a partir da noção de afeto participa dessa atitude,
pois ela torna impossível a procura ou a afirmação de identidades de autoria ou
originalidade claras (2014, p. 41).
Contudo Leone alerta para que tal
conceituação não seja esvaziada pelo elogio ou pelas repetições e palavras de
ordem, apaziguando as suas potências desestabilizadoras (2014, p. 41).
Leone abre o segundo
capítulo “Escolhas afetivas e edição de poesia”, apresentando o objetivo de
entender como se dá o fazer junto, nas poesias argentinas e brasileiras
contemporâneas. Observa que as escolhas afetivas muitas vezes são entendidas
como um dispositivo legitimador de práticas
endogâmicas, “nas quais o afeto seria sinônimo de relações especulares, dentro
de um grupo fechado de iguais” (2014, p. 44), procurando demonstrar, contudo,
que as relações são bem mais dissimétricas. Ressalta que tradicionalmente, o
trabalho editorial combina critérios econômicos, políticos e estéticos (2014, p.
44). Daí ela se esforçar em pensar como funciona a publicação de poesia em
editoras pequenas e independentes, uma vez que as grandes editoras não se
interessariam em divulgar novos poetas pelo grande risco financeiro. Observa
que essas pequenas editoras não se veem como concorrentes, mas como
garantidoras da continuidade de um projeto comum, ou seja, “antes que uma
lógica de lutas e concorrência, parece se destacar uma lógica de afetos
conviviais”, em que podem ser sobrepor as figuras e tarefas de escritor, editor
e leitor (2014, p. 56).
Percebe-se, no entanto, que os projetos
poéticos contemporâneos não possuem definições ou filiações, mostrando que o
agrupamento é muito mais em nível de amizade do que de busca por uma linhagem
de produção poética.
Assim Leone analisa casos de editoração
de livros de poesia e aponta, mais uma vez, para a crítica que a relação amical
pode levar a uma endogamia, ou seja, a formação de um círculo fechado de
poetas-amigos de difícil entrada. Para a autora essa crítica está fundada em um
desconhecimento do funcionamento das edições de livros e de blogs, assim como
uma resistência a tratar a afetividade como critério válido. Assim “em lugar de
assinalar negativamente a amizade e o afeto entre os organizadores e
participantes, o que tentamos mostrar é a importância da pergunta pelo
significado do sintoma da insistência no critério afetivo” (2014, p. 121).
No terceiro capítulo, “Poéticas do afeto:
endereçamento, citação e nomes próprios”, Leone vai além da matriz
convivial na edição e passa a apontar como ela funciona como matriz de escrita
poética. Assim a autora apresenta diferentes marcas textuais que aparecem na
obra dos poetas como, por exemplo, o de “apresentar o próprio texto como
deformado por diferentes vozes” (2014, p. 171), materializados no uso de aspas,
caixas de diálogo, signos de interrogação. Outra marca observada é o uso do
nome próprio de lugares, nomes e textos que referem à momentos concretos na
vida literária, assim como o uso de diversos tipos de citação. Analisando as
produções de Aníbal Cristobo (blog Yodebería
estar haciendootra cosa) e Marília Garcia (videoAçaí ou cine Paissandu para Aníbal Cristobo), Leone retoma a ideia de trânsito e
percurso citada na sua introdução para concluir que:
Trata- se de gestos de destinação e endereçamento que possibilitam uma –
provisória, falha, vulnerada, imprópria – configuração do eu. Por isso, se a
arte contemporânea insiste nos percursos é porque eles se realizam apenas para
ser afetados, como única forma de criar algum tipo de pertencimento,
ou de comunidade, quando as cartografias e as identidades declararam seu
definitivo enfraquecimento. (2014, p. 157).
Assim, como todo traslado é afetivo, cabe à arte contemporânea, mediante
as falhas do mapa operar contra esse enfraquecimento das cartografias e das
identidades e em favor do pertencimento e do encontro.
No quarto e último capítulo “Repensando
as escolhas afetivas: por um gesto crítico”, Leone diz propõe como conclusão
instalar o incômodo afetivo a partir da inquietação produzida pela poesia (2014, p. 164). Em suas próprias palavras, ela se preocupa
com a:
naturalização dos modos de consagração predominantes na poesia
produzida nas últimas décadas – a do meu tempo, a dos meus amigos
–, modos da consagração das quais a crítica participa intimamente. Daí que a
tarefa assumida tenha sido, desde o começo, a desnaturalização desses modos – e
não a sua desativação! A tarefa de tornar mais transparentes as tramas da
consagração literária, decorrente de escolhas editoriais assim como estéticas,
que estão em jogo tanto nas coleções e antologias, quanto nos procedimentos de
citação e endereçamento trabalhados nos poemas. ( 2014, p.164)
O livro, de alguma maneira panorâmico e
ao mesmo tempo interpretativo, evidencia o esforço de desvelar “as tramas
da consagração literária” como provenientes de escolhas editoriais e de
escolhas estéticas, que aparecem nas antologias, oficinas e blogs por ela
analisada. A desnaturalização dos critérios afetivos e transitivos que a autora
propõe faz parte de um exercício em “reinvestir – de incômodo – esse afeto, e
sua relação com ideias de comunidade e amizade, tão caras ao nosso pensamento crítico”
(2014, p. 164). Ela propõe que suas reflexões críticas
sobre as escolhas afetivas possam ser úteis para pensar outros campos poético,
artístico ou social, incitando para a possibilidade de que novas formas de
organização social ou comunitária no nosso tempo. Segundo ela, uma poética das
escolhas afetivas encena relações dissimétricas, entre corpos que se afetam uns
aos outros, contribuindo para a possibilidade acima mencionada.
O que atravessa o trabalho de Leone em
“Poesia e escolhas afetivas…” é que a autora cuida de evidenciar que a produção
poética deixa de ser vista como produto de uma mente genial, para se mostrar
como relacional – com outros textos, outros autores, amigos e de “desnaturalizar”
as relações entre editores, leitores e autores, ressaltando, contudo, que não é
necessariamente prejudicial essa rede. A relação com o “extra-literário”, isto
é, questões de editoração, sociais e culturais, aparecem como fazendo parte e
construindo o “intra-literário” afetivo, dialógico, relacional, mas muitas
vezes também arbitrário, mas também numa perspectiva de trânsito, de encontro e
de diálogo. Sua análise contribui para que cuidemos dessa categoria afeto na
análise das produções poética contemporâneas de maneira a evitar o vício das
“palavras de ordem”, que podem mascarar percepções mais críticas transformar
questões sobre os aspectos afetivos e corporais na produção de um saber
literário em algo pacificador e que não nos modifique. Em uma entrevista de
novembro e dezembro de 2015 para o blog “Bliss não tem bis” a autora disse que,
se escrevesse o livro naquela data, ele seria outro. Em suas palavras ela
afirma que “Hoje, acho que eu tentaria lançar os
fios mais longe, sabe? Tentaria ir para a literatura medieval para poder falar
da Marília, eu acho que hoje eu faria isso…”. Entendemos como Leone que uma
análise do contemporâneo prescinde de analisar comparativamente as tramas do
passado para compreender para onde esta ética e estética do afeto pode nos
encaminhar.