terça-feira, 23 de maio de 2023

velando o morto

CUIDANDO DOS MORTOS


Poema de Malena Martinic


Eu tenho sujeira suficiente nas minhas unhas.

É que eu enterrei você.

Árdua foi a tentativa de eliminá-lo. Difícil foi a tentativa.

Quase uma quimera e, por vezes, uma utopia... uma das mais complicadas.

Foi difícil, acima de tudo, convencer o coração.

Ele sempre me joga uma luta dos antípodas.

Nunca concorda com meu corpo ou com o que penso.

Tenho um coração covarde, pouco lúcido e crente.

Tão esperançoso com essa coisa de amor, como se fosse verdade.

Tive longas reuniões discutindo o imperativo de sua morte.

Mas ele saiu com isso do lado esquerdo, do fio vermelho, desde sempre.

Eu tenho um coração idiota. Sei.

Então, depois que acabou o espaço para o debate inteligente, comecei a mentir para ele.

Eu disse ao meu coração que ia te amar.

Que suas imbecilidades eram, em suma, encantadoras.

Que não te querer não significava te abandonar.

Não querer queimar... não era tão grave assim.

Que eu gostava de fingir.

Que adorava seus cheiros, suas brincadeiras e sua falta de jeito.

E sentou-se calmamente entre os lençóis bagunçados, sem dormir mais,

e brindamos com rum em silêncio.

Meu coração e eu finalmente concordamos.

Com o coração adormecido, embriagado e envenenado. Foi assim que passei a noite.

Com o coração espasmódico e trêmulo, assim caminhei por esta rua.

E eu matei você com certeza. Sem vingança. Com alívio.

Roí unhas, engoli sujeira.

Com o coração jogado na sarjeta é possível matar... viver.


VELANDO AL MUERTO


Tengo suficiente tierrita en mis uñas.

Es que acabo de enterrarte.

Arduo fue el intento de eliminarte. Difícil fue el intento.

Casi  una quimera y, por momentos, una utopía... de las más enrevesadas.

Resultó difícil, sobre todo, convencer al corazón.

Siempre me juega un combate desde las antípodas.

Nunca acuerda ni con mi cuerpo ni con lo que pienso.

Tengo un corazón cobarde, poco lúcido y creyente.

Tan esperanzado él con esto del amor, como si fuera cierto.

Tuve largas reuniones argumentando lo imperioso de tu muerte.

Pero él salía con esto del lado izquierdo, del hilo rojo, del para siempre.

Tengo un corazón idiota. Sépanlo.

Así que, acabado el espacio del debate inteligente, le empecé a mentir.

Le dije al corazón que iba a quererte.

Que tus imbecilidades resultaban, en fin, encantadoras.

Que no desearte no implicaba abandonarte.

Que no arder de ganas... no era tan grave.

Que me gustaba fingir.

Que adoraba tus olores, tus chistes y tus torpezas.

Y se sentó en silencio entre las sábanas desordenadas, de dormir no más,

y brindamos con ron pero en silencio.

Mi corazón y yo, por fin de acuerdo.

Con un corazón dormido, intoxicado y en ponzoña. Así recorrí la noche.

Con un corazón espasmódico y trepidante, así recorrí esta calle.

Y te maté con certeza. Sin venganza. Con alivio.

Mordí uñas, tragué tierra.

Con un corazón arrojado a patadas a la alcantarilla es posible matar... para vivir.

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