segunda-feira, 29 de maio de 2023

chachoeiras não engravidam nosso coração

 


ela vai embora

é incrivel como é possível sentir solidão antes da hora

e nem é como se fosse para sempre

a eminência da sua partida tem me feito prestar atenção no agora

num gosto de café, num tom de voz, na temperatura do vento

enquanto a gente se desloca de moto sobre o boulevard

talvez a marília garcia estivesse falando disso 

quando cita o infraordinário, do George Perec

 

outro dia mesmo disse aos meus amigos

-  quero escrever um livro que não seja triste, um livro de amor

não demorou para isso se transmutar em vontade de amor

o que será que chegou primeiro

o medo da futura solidão ou o desejo por amor?

 

durante muito tempo eu gostei de fingir  

que todo amor era pra sempre

que todo encontro era perfeito

que constância vale mais que duração

gostava de acreditar 

que amar demais era meu superpoder

gostava (secretamente é claro) da dor profunda

física 

que nos causam a falta, o ciúme e a rejeição 

a gente aprende na infância a gostar de banho frio

de jiló

de nó apertado nos cabelos

depois aprende a se amar

a ter vergonha de amar

depois a gente aprende a amar os filhos

tenho tanta vergonha de amar demais

não os amigos, nem os filhos

não é ridículo amar os filhos


cultivo um amor especial pelas cachoeiras

cachoeiras são meu dispositivo perfeito 

para me ligar ao agora

experimente caminhar sobre o lodo 

das pedras de uma cachoeira 

sem estar conectada

é como descer uma escada

não se desce uma impunemente uma escada 

sem estar ancorado no agora

cachoeiras são banho frio e lambida

amor e combate

cachoeira sussuram "eu te amo" 

sem engravidar nosso coração

possivelmente o amor das cachoeiras 

seja tão gratuito 

quanto o amor aos filhos 

 

naquele dia você me abraçou

sussurou "eu te amo"

eu já te amava

e estava distraída

engolida por essa laguna

do fato de ela ir embora

seu sussurro, sem querer

fecundou meu coração

 

mas não tem nada não

sigo achando lindo

que você ame

e continue cuidando

da sua história de amor

e, da solidão

e da dor 

ainda tenho as cachoeiras 



 


domingo, 28 de maio de 2023

tomando distância, o que é amor?


é tão fácil esquecer 
que quase tudo 

é medo de suportar 

a solidão ou a morte

e que nem todo mundo

é para por na boca

sábado, 27 de maio de 2023

ensaio




sossega poeta

você vai escrever


sob as cobertas

na madrugada

nossos pés se tocavam

e sabíamos que nos amávamos


mas não se esqueça

que isso ainda não é o amor

é só poesia

quinta-feira, 25 de maio de 2023

lista

compor com o cinza puro de maio

as tantas coisas que me fazem mulher

taciturna, histérica, perturbada, sombria

desdenhosa, egoísta, frenética

vaidosa, profana, orgulhosa


em dias frios como hoje 

manter os olhos cerrados

é um risco permitir que as nuvens

toquem a linha d'água de meus olhos

quarta-feira, 24 de maio de 2023

interdito

uma tarde inteira

repetindo a exaustão

não é possível

não, não, não


mas meu coração, cristina

continua querendo

ancorar navios no espaço

terça-feira, 23 de maio de 2023

velando o morto

CUIDANDO DOS MORTOS


Poema de Malena Martinic


Eu tenho sujeira suficiente nas minhas unhas.

É que eu enterrei você.

Árdua foi a tentativa de eliminá-lo. Difícil foi a tentativa.

Quase uma quimera e, por vezes, uma utopia... uma das mais complicadas.

Foi difícil, acima de tudo, convencer o coração.

Ele sempre me joga uma luta dos antípodas.

Nunca concorda com meu corpo ou com o que penso.

Tenho um coração covarde, pouco lúcido e crente.

Tão esperançoso com essa coisa de amor, como se fosse verdade.

Tive longas reuniões discutindo o imperativo de sua morte.

Mas ele saiu com isso do lado esquerdo, do fio vermelho, desde sempre.

Eu tenho um coração idiota. Sei.

Então, depois que acabou o espaço para o debate inteligente, comecei a mentir para ele.

Eu disse ao meu coração que ia te amar.

Que suas imbecilidades eram, em suma, encantadoras.

Que não te querer não significava te abandonar.

Não querer queimar... não era tão grave assim.

Que eu gostava de fingir.

Que adorava seus cheiros, suas brincadeiras e sua falta de jeito.

E sentou-se calmamente entre os lençóis bagunçados, sem dormir mais,

e brindamos com rum em silêncio.

Meu coração e eu finalmente concordamos.

Com o coração adormecido, embriagado e envenenado. Foi assim que passei a noite.

Com o coração espasmódico e trêmulo, assim caminhei por esta rua.

E eu matei você com certeza. Sem vingança. Com alívio.

Roí unhas, engoli sujeira.

Com o coração jogado na sarjeta é possível matar... viver.


VELANDO AL MUERTO


Tengo suficiente tierrita en mis uñas.

Es que acabo de enterrarte.

Arduo fue el intento de eliminarte. Difícil fue el intento.

Casi  una quimera y, por momentos, una utopía... de las más enrevesadas.

Resultó difícil, sobre todo, convencer al corazón.

Siempre me juega un combate desde las antípodas.

Nunca acuerda ni con mi cuerpo ni con lo que pienso.

Tengo un corazón cobarde, poco lúcido y creyente.

Tan esperanzado él con esto del amor, como si fuera cierto.

Tuve largas reuniones argumentando lo imperioso de tu muerte.

Pero él salía con esto del lado izquierdo, del hilo rojo, del para siempre.

Tengo un corazón idiota. Sépanlo.

Así que, acabado el espacio del debate inteligente, le empecé a mentir.

Le dije al corazón que iba a quererte.

Que tus imbecilidades resultaban, en fin, encantadoras.

Que no desearte no implicaba abandonarte.

Que no arder de ganas... no era tan grave.

Que me gustaba fingir.

Que adoraba tus olores, tus chistes y tus torpezas.

Y se sentó en silencio entre las sábanas desordenadas, de dormir no más,

y brindamos con ron pero en silencio.

Mi corazón y yo, por fin de acuerdo.

Con un corazón dormido, intoxicado y en ponzoña. Así recorrí la noche.

Con un corazón espasmódico y trepidante, así recorrí esta calle.

Y te maté con certeza. Sin venganza. Con alivio.

Mordí uñas, tragué tierra.

Con un corazón arrojado a patadas a la alcantarilla es posible matar... para vivir.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

abraço

porque você demoliu meus planos de eremita

há quatro ossos em minha pelve

que estão todos sitiados

sabia que três dias de cerco destroi uma cidade?

 

nietzsche acreditava que a reatividade 

era uma forma de negar a potência da vida

mas eu queria saber se ontem

você comeu,, bebeu, dançou

ou chorou

pareço circunspecta

mas posso ser bem territorialista

 

esse poema é só um corpo de palavras

tentando abraçar você

Poema de Aixa Rava
Adaptação de Norma de Souza Lopes

Penso enquanto corto as batatas
como cozinho para mim faz tempo
ela cozinhava para nós
que eu gostaria de cozinhar para você
cozinhar você nesta panela
reduzi-la com um bocado de cogumelo
mágico
sal e pimenta a gosto, refogar levemente
com cebola roxa e pimenta vermelha
colocar as batatas por baixo e por cima
não te preocupes
Está quente mas o aroma é extraordinário.
Você estaria fofa, quase tanto quanto você é
dourada
assim como seu cabelo fica no verão,
Eu te comeria com mordidas desesperadas
tê-la em mim como nunca antes.

Está claro
que eu ainda não consigo
cozinhar para outra



COCINAR

Pienso mientras corto las papas
mientras cocino para mí como hace tiempo
cocinaba para nosotros
que yo querría cocinarte a vos
cocinarte en esta cacerola
reducirte con un bocado de hongo
mágico
salpimentarte a gusto, rehogarte apenas
con cebolla morada y pimiento rojo
ponerte las papas debajo y encima
no te preocupes
hace calor pero el aroma es extraordinario.
Quedarías tierno, casi tanto como sos
dorado
así como se vuelve tu pelo en el verano,
te comería a mordiscos desesperados
tenerte dentro como nunca antes.

Está claro
que todavía no puedo
cocinar para otro.

domingo, 21 de maio de 2023

tênue

lembra-se daquele dia na praça da matriz

quando corremos atrás do pardais só para fingir que voávamos?

juntas não há constrangimento em ser infantil


lembra da máquina de música movida a moedas

quem usa moedas hoje em dia, meu bem?


a gente se encontra

nestas pedras gastas da leste

xeque-mate você disse, é uma bebida de morte

e nem com isso aprendi


fito seu sorriso largo, um rio amazonas 

atravessando a semana de bh

outro dia te vi pedindo vinho 

no bar do antônio

ele caprichando

é sempre assim pra você 

a vida te dá extras

olhando sem muita vigilância

você nem parece fazer tanta força

para ser feliz


arquiteto planos 

para poder continuar te amando

sem essa tralha do amor romântico

mas, se me distraio

já estou citando adélia, adília, drummond

querendo inventar um poema 

onde habitamos sós


simulo uma sereia

a espera que você

possa me desejar


queria pousar

em você, meu amor

como quem põe flores 

em seus cabelos

escondê-las na bagunça dos cachos

até que imperceptível

elas gravitassem pelo ar

indolores

sábado, 20 de maio de 2023

caixa preta

na curva do seu silêncio

minha imaginação traça cenas

de olhos fechados

posso ver o tijolos amarelos 

do meu 

ao seu peito


amor, você diz (como diz a todo mundo)

e meu rosto se tinge

(três segundo é o tempo que o sangue gasta do coração até o rosto)


você nunca vai saber

agora sobrou apenas a estática

mas killing Me Softly With His Song

na versão de Fugees

era a nossa canção

quinta-feira, 18 de maio de 2023

ainda não é um poema de amor

o amor é sem fundo, misterioso

não há nada de transparente no amor

é iluminado 

colorido 

intenso

no amor canções apalpam nossa alma


entrar no amor num salto sem rede

manter os olhos acessos

semicerrados

ouvidos atentos

atados

voracidades


há que se investir no combate 

ser ao mesmo tempo

caça e caçador


saber dos riscos de sair de si em busca de um objeto

entrar no amor não como quem cultiva cogumelos

controla o vento 

a água

a luz 

o calor

não como quem fuma 

e se deixar tragar pelo vapor


transar os meios

ignorar os fins

tocar sem fundir


garantir a economia das distâncias

consumir a intimidade

fruir a diferença

e a dinâmica integral

da existência de cada um



quarta-feira, 17 de maio de 2023

coragem poeta

ainda não é um poema de amor

mas coragem, poeta

a fonte não se esgotou 

e você não estava quebrada, afinal


plante uma pausa

para esquecer fugas desesperadas

a respiração sufocada

os chuveiros quebrados

o feijão esquecido no congelador


já era hora

de largar as sombras

desfrutar beijos famintos

amores cerebrais

colher pequenos abraços às oito horas

dar pinta de outdoor


reconheço que nada

no amor

é indolor

mas a poesia é pra sempre

e para si, poeta

você também é para sempre

terça-feira, 16 de maio de 2023

fogueira

 Adélia

até aceito

um amor feinho


mas no miolo

da medula

queria um encontro de pedra

dois seixos

encarnados


batendo-se 

desesperados

até que uma centelha

incendiasse

a cama

a casa

o mundo

terça-feira, 9 de maio de 2023

Tou aqui pensando em como eu não me sinto tão triste assim pela perda da Rita Lee. Acho que não sinto tanto porque o que ela foi pra mim vai continuar sendo. Ela rasgou dois séculos sendo mutante, não repetindo nada, dando um foda-se pra normose dessa caralhada de gente que acha que nós temos que seguir um roteiro. Rita ensinou pra gente não precisa ser a mesma pessoa sempre, que a gente pode se inventar o tempo todo. Acho que é isso. Ela fica em mim nas letras que estão quase inscritas na minha pele. Fica nesse modo de me inventar todo dia, de não se resignar a uma vida besta. Sou grata por ter recebido dela esse exemplo, dela ter ficado de lá da tela, da agulha, me mostrando que tudo bem ser inconsistente que se às vezes der ruim, tudo bem tbm. Tem essa entrevista dela na Roling Stone onde ela  diz assim "Vamos combinar que todo mundo mente?",  "Em entrevista, a coisa fica sendo ainda mais sedutora. Afinal, inventar coisas absurdas a seu respeito não é mais interessante para um jornalista do que simplesmente contar-lhe como sua vidinha verdadeira é besta?" ou ainda "Dentro deste corpo que me pertence há 60 anos já pude presenciar uma porrada de exemplos de minha burrice e mediocridade". termina assim "Querido, inventa bastante coisa sobre mim nessa minha matéria?   Não vou precisar fazer muita força para manter a Rita na minha memória. Ela já tá inscrita no meu modo de viver: invento uma história, vivo ela todo dia, e essa é a minha história