ela vai embora
é incrivel como é possível sentir solidão antes da hora
e nem é como se fosse para sempre
a eminência da sua partida tem me feito prestar atenção no agora
num gosto de café, num tom de voz, na temperatura do vento
enquanto a gente se desloca de moto sobre o boulevard
talvez a marília garcia estivesse falando disso
quando cita o infraordinário, do George Perec
outro dia mesmo disse aos meus amigos
- quero escrever um livro que não seja triste, um livro de amor
não demorou para isso se transmutar em vontade de amor
o que será que chegou primeiro
o medo da futura solidão ou o desejo por amor?
durante muito tempo eu gostei de fingir
que todo amor era pra sempre
que todo encontro era perfeito
que constância vale mais que duração
gostava de acreditar
que amar demais era meu superpoder
gostava (secretamente é claro) da dor profunda
física
que nos causam a falta, o ciúme e a rejeição
a gente aprende na infância a gostar de banho frio
de jiló
de nó apertado nos cabelos
depois aprende a se amar
a ter vergonha de amar
depois a gente aprende a amar os filhos
tenho tanta vergonha de amar demais
não os amigos, nem os filhos
não é ridículo amar os filhos
cultivo um amor especial pelas cachoeiras
cachoeiras são meu dispositivo perfeito
para me ligar ao agora
experimente caminhar sobre o lodo
das pedras de uma cachoeira
sem estar conectada
é como descer uma escada
não se desce uma impunemente uma escada
sem estar ancorado no agora
cachoeiras são banho frio e lambida
amor e combate
cachoeira sussuram "eu te amo"
sem engravidar nosso coração
possivelmente o amor das cachoeiras
seja tão gratuito
quanto o amor aos filhos
naquele dia você me abraçou
sussurou "eu te amo"
eu já te amava
e estava distraída
engolida por essa laguna
do fato de ela ir embora
seu sussurro, sem querer
fecundou meu coração
mas não tem nada não
sigo achando lindo
que você ame
e continue cuidando
da sua história de amor
e, da solidão
e da dor
ainda tenho as cachoeiras