súbito
acordar incapaz
de carregar nos braços
no máximo
mãos nas costas
um balanço
uma árvore
um tobogã
a desconexão
como pedra
encaixada
onde havia osso
o amor
súbito
acordar incapaz
de carregar nos braços
no máximo
mãos nas costas
um balanço
uma árvore
um tobogã
a desconexão
como pedra
encaixada
onde havia osso
o amor
Muita coisa se aprende na literatura sobre bipolaridade, mas pouco disso é realmente útil para o cotidiano desse transtorno. Dois sintomas em especial tornam a vida e os relacionamentos bem difíceis. Estou falando da impulsividade e da persecução.
Geralmente os estudos afirmam que a impulsividade é um quadro das fases maníacas. O que não se diz é que esse aspecto do transtorno pode se tornar uma característica da personalidade. Imagina conviver com alguém que opera dentro de uma lógica interna inexorável e que é quase incapaz de mudar de direção em qualquer atividade, mesmo que descubra que sua execução pode estar errada. A pessoa não consegue parar. Seja o modo de lavar a louça, o jeito de temperar um prato ou a condução de um trabalho corporativo.. Ela começa a tarefa ou atividade e, até que chegue ao resultado, bem sucedido ou fracassado, não consegue parar.
Eu sei, você deve estar pensando: “que bom, é alguém que termina o que começa!”. Mas esse indivíduo passa a ideia de um teimoso inveterado e quase sempre é o terror de espaços muito hierarquizados porque ele nunca consegue esperar a autorização de um chefe para realizar um trabalho da maneira como acredita que dará certo. Quando dá certo a quebra da ordem passa batido. Mas se dá errado ele se torna um profissional indesejável no setor.
Outro sintoma difícil e pouco explicado é a persecução. Quando os estudos falam sobre delírio persecutório geralmente explicam crises em que a pessoa vive episódios delirantes em que é objeto de fraude, espionagem, perseguição, envenenamento, calúnia, assédio. Mas a persecução, quando se vive o transtorno por muitos anos, se torna, como a impulsividade, um modo de viver. Para quem observa de fora é visível que houve um afastamento da realidade. Mas viver em persecução não é tão óbvio para quem sofre. Não dá para saber se as outras pessoas estão agindo de má fé, sendo mal intencionadas ou se são só os efeitos da persecução em ação. Trata-se de viver sob constante defesa ou abrir mão e confiar inteiramente nas pessoas. Quem consegue fazer isso, renunciar totalmente às próprias defesas egóicas?
E o pior que, a despeito da importância dos efeitos das medicação nesses sintomas (antipsicóticos, estabilizantes de humor etc.) e até mesmo da terapia, é como se o cérebro assumisse um modo de funcionamento automático para esses dois fenômenos. A pessoa trata, conversa sobre, racionaliza, reflete e quando menos espera eles surgem novamente, como um modos operandi irremissível.
Longe de mim solicitar condescendência para quem me ama e vive próximo de mim, vivo isso todo dia mas sei que ninguém é obrigado. Só estou escrevendo isso aqui, como sempre, para ver se diminui o meu cansaço com isso tudo.
- Não tem nenhum livro lá não, mãe.
- Como não? Estão guardados onde, então?
- Não tem nenhum livro. Foi tudo para o lixo.
Quantos?
Cento e cinquenta? Duzentos?
Foda-se Pessoa. Não consigo.
Ai, tinha aquela edição especial do Tabacaria que o Ricardo me deu. Tinha o Silêncio da Mari.
Tinha aquele Ulysses capa dura. Em tempo de aperto conseguia quinhentinhos fácil nele. Aquele da Laís, com dedicatória. Livros de poetas vivos que eu detestava, de poetas menores que eu amava.
É. Deviam ser uns duzentos.
Ainda bem que eu devolvi o Poemas da Wislawa para o Rodrigo. Wislawa não, Tia Geralda.
Para me consolar ela diz:
- Imagina, pode ter uma filhinha de gari lendo alguns deles agora.
Não era apenas a capa, o volume, o cheiro ou a mancha da página. Vivo tão ligada nas telas, nos livros narrados, que não me digno a afirmar fidelidade. Era a idéia de tê-los. Não fosse exagero, diria que me sinto amputada. Drama queen.
-Você viu ele jogando fora? Não pensou em me ligar, em recolher, guardar?
- Quase três anos, mãe, não achei que fosse importante.
Me pertuba essa lembrança a conta-gotas de um ou outro exemplar: Os drumonds, os bandeiras, minhas adélias, adílias, clarices e cecílias. Ah, a Carolina, tão garimpada e agora jogada fora.
Três anos esperando o melhor momento. Bastou tirar a primeira sacola. Uns trinta. E depois essa desgraça. Mamãe não gostava que a gente dissesse "desgraça", para ela o mal vivia encarnado na palavra. Mas desgraça tem o tamanho exato da minha raiva.
Mais de duzentos, com certeza.
Se me banisse da casa, da mente, do ódio. Se eu não precisasse mais sentir medo, talvez eu até pagasse o preço.
Pagar. É isso que faço.
Ainda bem que posso pagar, ainda bem que posso ajudar. Ainda bem...
Ainda bem para quem?
É que eu nunca sei o que poderia ter sido se eu não pagasse nada. Se saisse dando porrada, dando um basta, dando um foda-se para todo mundo e gozando dos frutos de tudo que renunciei para estar aqui.
Mas eu não renunciei sozinha. Tinham os filhos.
Calharam nascer de uma mulher que queria figurar nos sucesso populares, e para isso estudava, trabalhava, esforçava e ocasionalmente escapava da vida comezinha de ser mãe.
Instituição fracassada. Três minutos de escrutínio e o que temos é derrota e culpa. E filhos que não se cumpriram.
Podia me assegurar de não esperar nada, mas a vida não é indolor, e o que corta neles me rasga.
Eu nem queria entender mecânica quântica. Só queria poder crer numa outra dimensão em que eu ainda tivesse meus livros. E uma história que não triturasse meus filhos.
"não escreve mais poesia?"
você pergunta
eu não respondo nada
estou cansada
desse versos requentados
sujos, amarelados
carregados pelo vento
jornal de ontem
exausta com este tempo
em que qualquer vigarista
inventa verdades
tantas eras
e este pêndulo de déspotas
a atrasar a democracia
(e nem era democracia, o fluxo
que eu queria
ainda não tem nome)
sei que tinha dito
"não vale a pena"
" não há nada a dizer"
mas há um sinal
de nascença em minha lingua
uma esperança obscena
abrir as portas
e mover o mundo
Em 2007, por ocasião de uma grave crise mental, eu fantasiava a implosão de todos os prédios escolares. No fundo do meu desespero eu queria começar do zero, fazer outra escola, outra educação.
Estranhamente o Corona vírus parece ter operado essa implosão. O espaço escolar, seu formato, suas tecnologias não atendem mais nem seu objetivo educativo primeiro nem os tangenciais, que é o de ser uns dos únicos aparelhos que leva uma certa assistência social onde o estado não chega. Ele precisa deixar de ser o que é.
No entanto quase ninguém, a começar pelas agências governamentais, consegue começar do zero. Fazer outra escola.
A minha fantasia era pensar que derrubando os prédios derrubaríamos seus dispositivos de exclusão. Eles não são de concreto. Eles estão erguidos discursivamente dentro de nós com a dureza do concreto.
É preciso muita força para não enlouquecer de novo. Aqui, imóvel diante da marcha da morte, da epidemia invisível da fome, incapaz de pensar algo novo, que interrompa o PROJETO hegemônico de exploração que avança irreprimível sobre o mundo.
De novo esse medo de ter me enganado em acreditar na força da educação.
caminho entre as pedras
e a água, e o lodo
e ouço os gritos
como na piada
do japonês
vai morrer
vi outro dia
o joão da mata
e o seu bando
correndo perigo
na cachoeira
e pareciam tão vivos
sabia que quase
morri um tanto de vezes?
viver é escolher
o risco
escolho um
chamado
francisco
de cinco anos
porque ele me abraça
sem máscara
e me ama
sem culpa
e se me julga
é por não ter
feito florir o cravo
da última vez
que veio me ver
pensei: entrei pra história
que bom que escolhi
ficar viva pra ser
a vovó das plantas
é triste assistir
o desfile diário
mil partidas
minha amiga espírita conta
segredos do além
ela diz: norma
quanto mais medo
e mais apego
mais triste o degredo
há dias que sou
o pato na copa
da árvore batendo
papo com a morte
francisco pergunta
desde a primeira frase
é agora que
o pato morre?
e por fim
e a tulipa?
ele ainda não sabe
há o risco
e o tributo
e de repente parece
que faz sentido
o eterno retorno
e a holotúria
da szymborska
morrer só um pouco
só um pouco
outro acento
outro ritmo
e nada do que disse
é
insistir em falar
é flutuar
enquanto não me lembro
que não sei nadar