quinta-feira, 3 de junho de 2021

Tinha

- Não tem nenhum livro lá não, mãe.

- Como não? Estão guardados onde, então?

- Não tem nenhum livro. Foi tudo para o lixo.

Quantos? 

Cento e cinquenta? Duzentos? 

"A renúncia é a libertação. Não querer é poder."

Foda-se Pessoa. Não consigo.

Ai, tinha aquela edição especial do Tabacaria que o Ricardo me deu. Tinha o Silêncio da Mari.

Tinha aquele Ulysses capa dura. Em tempo de aperto conseguia quinhentinhos fácil nele. Aquele da Laís, com dedicatória. Livros de poetas vivos que eu detestava, de poetas menores que eu amava.

É. Deviam ser uns duzentos. 

Ainda bem que eu devolvi o Poemas da Wislawa para o Rodrigo. Wislawa não, Tia Geralda.

Para me consolar ela diz:

-  Imagina, pode ter uma filhinha de gari lendo alguns deles agora. 

Não era apenas a capa, o volume, o cheiro ou a mancha da página. Vivo tão ligada nas telas, nos livros narrados, que não me digno a afirmar fidelidade. Era a idéia de tê-los. Não fosse exagero, diria que me sinto amputada. Drama queen

-Você viu ele jogando fora? Não pensou em me ligar, em recolher, guardar?

- Quase três anos, mãe, não achei que fosse importante. 

Me pertuba essa lembrança a conta-gotas de um ou outro exemplar: Os drumonds, os bandeiras, minhas adélias, adílias, clarices e cecílias. Ah, a Carolina, tão garimpada e agora jogada fora. 

Três anos esperando o melhor momento. Bastou tirar a primeira sacola. Uns trinta. E depois essa desgraça. Mamãe não gostava que a gente dissesse "desgraça",  para ela o mal vivia encarnado na palavra. Mas desgraça tem o tamanho exato da minha raiva. 

Mais de duzentos, com certeza.

Se me banisse da casa, da mente, do ódio. Se eu não precisasse mais sentir medo, talvez eu até pagasse o preço. 

Pagar. É isso que faço. 

Ainda bem que posso pagar, ainda bem que posso ajudar. Ainda bem... 

Ainda bem para quem?

É que eu nunca sei o que poderia ter sido se eu não pagasse nada. Se saisse dando porrada, dando um basta, dando um foda-se para todo mundo e gozando dos frutos de tudo que renunciei para estar aqui. 

Mas eu não renunciei sozinha. Tinham os filhos. 

Calharam nascer de uma mulher que queria figurar nos sucesso populares, e para isso estudava, trabalhava, esforçava e ocasionalmente escapava da vida comezinha de ser mãe.

Instituição fracassada. Três minutos de escrutínio e o que temos é derrota e culpa. E filhos que não se cumpriram.

Podia me assegurar de não esperar nada, mas a vida não é indolor, e o que corta neles me rasga. 

Eu nem queria entender mecânica quântica. Só queria poder crer numa outra dimensão em que eu ainda tivesse meus livros. E uma história que não triturasse meus filhos. 

Um comentário:

  1. Amiga! Que foda. Você relata lindamente essa tragédia pessoal. E estou indignado junto com você. E com uma vontade enorme de sair batendo em quem foi responsável por essa amputação.

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