quarta-feira, 11 de março de 2020

regresso

Regresso

Era eu e você em um encontro pleno, onde a casa, a terra, a vida eram macias e desemaranhadas.
Éramos felizes de um jeito descrito apenas pela literatura, pois contínuo, intenso, definitivo.
Despertar foi difícil.
Eu olhava pra você e me perguntava: - Como ela pode não saber? Foi tão real!
Caminhava ao seu lado e quase não te ouvia esperando o momento exato em que tudo iria começar. Qual esquina, qual passo, qual o próximo evento colocaria em marcha o nosso destino?
Para mim era certo, aquele encontro estava lá no futuro, macio e desemaranhado, macio e desemaranhado.
No entanto comecei a perceber que esse momento não iria chegar.
Chegava miséria, violência, terror, desumanidade, autoritarismo. Golpes severos em minhas capacidades místicas e otimistas de ver o mundo.
Me ressenti da vida e principalmente da poesia.
No começo achei que não conseguia mais escrever. Depois reconheci aquele padrão que me faz recusar a beleza, como Jonas que não queria ir a Nínive porque sabia que aqueles homens maus iriam se converter.
No fundo achava que a qualquer momento a feiura iria ruir e o mundo voltaria a ser belo novamente.
Não está funcionando.
Eu aqui me dobrando sob o peso da maldade desse dia que, em escala, é maior que a de ontem, que é maior que a de anteontem.
Abrir mão da minha capacidade de contemplação fez de mim uma mendiga rastejante, chacoalhando desesperada a minha intimidade em troca de migalhas de afeição.
Perdão poesia, perdão.
Ainda bem que sou refém da beleza.
Espero que me aceite de volta aqui.

Um comentário:

  1. "Eu aqui me dobrando sob o peso da maldade desse dia que, em escala, é maior que a de ontem, que é maior que a de anteontem."

    Sinto a mesma coisa. Essas palavras me tocaram qual punção. Foi fundo. E mexeu comigo e com minha noção de mundo. A princípio, não quis concordar, mas tive que me render.

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