quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Abraço o acaso mas o infinito me apavora

Foi por causa do Le Spleen de Paris que eu passei a me questionar acerca do valor de me embriagar. Tais vertigens não são para mim o que é para todo mundo (talvez não todo mundo, talvez para a maioria das pessoas). Nunca experimento alívio do peso do tempo. Abraço o acaso mas o infinito me apavora. Me embriagar é perder o controle e envelhecer a velocidade da luz. 
Não que haja alguma moral nisso.
Sou capaz de desfrutar do álcool, da poesia e da virtude mas me entregar é como estar a me afogar. 
Passei um ano aprendendo a nadar mas toda vez que perco o pé me desespero. A ausência de chão me assombra. Dizem que é possível aprender sobre a água observando navios, sua flutuação, a luz do sol incendiando as águas debaixo do casco. Um navio é uma caixa flutuante, um exagero das leis da física. Nadar também é um exagero das leis da física. Todo dia acordo desejando nadar sem medo da distância entre mim e o fundo. Venho pintando peixes, inventando barcos, esculpindo moluscos. É só um quarto mas em breve vai parecer o fundo do mar.  Talvez fosse mais fácil aprender a me embriagar observando os navios. Mas minha terra não tem navios. 

Um verbete feminino para 2020

( nem tanto o 7 mas muito muito o 9)

Consistência
con·sis·tên·ci·a
sf
1 Estado, qualidade ou natureza daquilo que é consistente.
2 Propriedade de um corpo que apresenta, entre as partículas de sua massa, características de densidade, coesão, homogeneidade, resistência, compacidade, firmeza, aderência etc.
3 Elevado índice de dureza, esperança, solidez, viscosidade, compacidade.
4 ENG Estado de firmeza, resistência ou compacidade da massa fresca do concreto, antes que se inicie a pega ou enrijecimento.
5 Impressão tátil ou visual que causa o aspecto ou aparência de uma matéria ou substância da qual é feita a massa de um corpo.
6 FIG Estado ou qualidade de uma coisa que promete ter durabilidade, solidez, veracidade, coerência, credibilidade, estabilidade.
7 LÓG propriedade de um pensamento, teoria ou proposição que não apresenta contradição, isto é, cujo teorema ou fórmula seja, simultaneamente, afirmação e negação.
8 POR EXT, FIG Firmeza, força, solidez; coerência na exposição dos fatos ou dos pontos de vista.
9 PSICOL, SOCIOL Persistência, estabilidade de posturas ou opiniões por parte de um indivíduo ou de uma comunidade.
10 FIG, LIT, TEAT Coerência estrutural (do texto ou da encenação).
11 MAT Vcompatibilidade.

(fonte: Dicionário Michaelis)

sábado, 21 de dezembro de 2019

Nadando para Nova Zelandia - Diana Goetsch- Tradução de Norma de Souza Lopes

Uma ou duas vezes na vida você encontra uma mulher
através do qual você nadaria através do oceano. O que você está fazendo?
Seus amigos perguntam, enquanto você aperfeiçoa suas braçadas,
e você simpatiza com todos aqueles excluídos do amor.
Seu único obstáculo, o Pacífico azul -
Onde seu sol está se pondo, ela está se vestindo de manhã
e quando a amanhece ela vira e volta para te cercar
aumentando o volume para sua cidade,
Ela está fechando as persianas, tirando a maquiagem.
Se você fosse Gatsby, construiria uma mansão
em uma enseada longe do mar da Tasmânia
e você daria festas para tentá-la. Você não é
é claro - embora nada seja impossível,
- salvo a vida sem ela, então você nada.

Diana Goetsch é uma poeta americana, autora de oito coleções, incluindo In America (uma seleção do Prêmio Rattle Chapbook de 2017 ), Nameless Boy (2015, Orchises Press) e The Job of Being Everybody , que venceu o concurso aberto do Centro de Poesia da Universidade Estadual de Cleveland em 2004 . Seus poemas apareceram nas principais revistas e antologias, incluindo The New Yorker, Poetry, The Gettysburg Review, The Iowa Review, Plowshares, The Southern Review e Best American Poetry . Ela também é escritora e colunista de não-ficção, autora de ensaios sobre assuntos que vão da história do beisebol à ética médica e mensagens políticas. De 2015 a 16, ela escreveu a "Vida em Transição"no The American Scholar, onde ela relatou sua transição de gênero, juntamente com os problemas enfrentados pela mais nova minoria visível dos Estados Unidos. Suas honras incluem bolsas de estudo da National Endowment for the Arts, da Fundação de Artes de Nova York, do Prêmio Donald Murray de pedagogia da escrita e de um prêmio de carrinho de mão .

Abaixo a explicação de Daiana sobre o poema:

Este poema foi inspirado por uma mulher que conheci há cinco anos, que morava na Nova Zelândia. Na vida real, tínhamos muito mais obstáculos do que apenas "o Pacífico azul", então tenho certeza de que é uma metáfora. Comparar-me a Gatsby pode ter sido uma metáfora menos precisa; quando o poema apareceu em Nameless Boy, eu havia mudado de nome e estava vivendo como mulher. Garrison Keillor leu posteriormente no Almanaque do escritor, atribuindo-o a Douglas Goetsch, que não existia. Em seguida, foi publicado na Nova Zelândia em todos os lugares, em braille, sob o nome de Diana - minha primeira assinatura feminina. Em todo o fluxo, o que permanece inalterado é o meu amor apaixonado pelas mulheres. Esse amor - junto com a pergunta,
Quem iria querer estar comigo?
- era meu maior medo quando decidi fazer a transição.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

diferes

suspende tua sede
como quem
tem todo tempo
do mundo

ignora o agora inexorável
a triturar o tempo
entre os dentes

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

π

um poema que teime
em não dizer o urgente
óbvio e necessário
é um poema sintoma

perfurar os círculos
do incompreensível
finalmente acariciar
as  paredes do âmago
das coisas
sentir sua textura
calor e espessura
e constatar
não está lá

nem na inútil procura
de si no seio do outro 
esta fuga esquiva
do enigma vazio
da essência de tudo
é puro tempo perdido

de mãos dadas
acariciar as faces
do poema
até que desenhe
nas paredes da periferia
das existência
a alegria das palavras
livre, lar, só
e gratuita alegria
de dançar
em pole dance
ou passe dloube
eu e o poema 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

alavanca

o que me mantém
suspensa no ar
é o amor e a morte
salto e queda
num abismo que arde


não se mira duas vezes
a inclassificável
substância da nudez
festa do corpo

deveria ser impossível
cair em si
dada a ausência
de ponto de apoio


terça-feira, 10 de dezembro de 2019

De um livro há muito esquecido saltou hoje um antigo bilhete de metrô. Observo-o atentamente e avalio se ainda seria possível usá-lo. Não dá, está vencido. Há muito não uso o metrô. Há muito não faço muitas coisas. A vida ficou mais fácil depois que compreendi e passei a aceitar a flutuação da existência.
Quando deixei o meu lar a dois anos atrás, apenas com uma mochila nas costas, caminhava deslizante sobre um piso flutuante que havia se tornado minha vida. Não era só a minha vida de mulher fugitiva, sob medida protetiva, era também o país e este buraco fundo em que nos metemos. Eu havia acreditado que o ovo da serpente não iria eclodir. De mim ninguém saia com fome, nem toda palavra encarnava.
Mas encarnaram. Firmadas estão as palavras calúnia, voraz, perversidade, fome, morte, pobreza, genocídio e tantas outras. A mentira que caiu sobre mim, sobre aquilo que eu tão ingenuamente chamava de honra, caiu também sobre todo o país. Não existe mais verdade, só recortes de imagens e palavras montadas para parecerem engraçadas, ou embaraçosas. Eu no entanto não me engano, não poupo ninguém: não há ingênuos, apenas convictos a cata da pseudo-verdades que lhes aqueçam.
A primeira vez que levaram meu celular, no viaduto Santa Tereza, eu ainda tinha forças para correr, ir ao chão, para lutar por aquele que era o meu simbolo de território. Como um antropólogo em nova terra nova, minha bolsa, meu celular eram minha casa. Ser roubada naquele dia foi ficar sem chão, sem lar.
Na segunda vez que me roubaram o celular, seis meses depois, na minha amada Praça da Estação, um certo Rafael, belo nome de anjo, senti que o mundo era um lugar perigoso e que os homens eram criaturas das quais eu teria que tomar distancia. Essa ainda me parece uma constatação acertada.
Hoje estou aqui, organizando estes livros na estante de minha nova casa, observando esse velho bilhete de metrô, deslumbrada com o que a minha vida se tornou. Cada detalhe da decoração, a escola, a 800 metros daqui, aquele trabalho que amo, esse vinho, esse queijo, esse "Melhor de mim" da Mariza tocando no celular, e aquela menina. Ah! aquela menina! 
Vou ler para ela o Neruda, ler para minha "menina morena e ágil", vou ler "para uma menina com uma flor" do Vinícius. Vou viver sem medo.
E se a vida me tirar de novo o chão, pinto asas em meus pés, que sou poeta, sou dessas.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

É que às vezes a gente escolhe se ferir. Por um não sei que de traumas que a teoria do afeto explica muito bem eu, que me chamo "a gente" quando ainda não estou pronta para assumir o protagonismo das minhas escolhas, observo atentamente sítios, pessoas e circunstâncias fora do alcance e dos desejo. Não que isso seja deliberado. De verdade, isso parte da minha incompetência em me julgar merecedora.
Teve aquela vez, você se lembra? Eu realmente achei que seria possível mas a vida tratou de arrastar meu coração no chapisco.
Não culpe a vida e não me poupe. Era uma uma escolha errada, como tantas outras, uma fantasia digna da imaginação de Gabo. 
Essa é a primeira vez na vida que desfruto o prazer absoluto da minha própria solidão. E é maravilhoso.
Portanto, não repare se eu parecer meio obsessiva. Venho descobrindo o quanto é fácil me amar. O quanto me tornei a mulher que eu queria ser e o quanto quero proteger esse encontro comigo mesma.
Você, assim como todos os entes que amo, são os poucos em que eu confio a compreensão.  Meus dias como mãe do mundo estão contados. Estou aprendendo a matar minha própria fome e não vou abrir a porta para quem me rouba a solidão sem verdadeira presença.
E sim, eu sei que é uma fase. Assim como antes, estou sempre pronta para ser outra, acolher o acaso, para  abraçar outros desafios e para existir em plenitude.

domingo, 1 de dezembro de 2019

vôo

há que se acordar e perceber
que estamos há muito
mirando o chão
desfrutando apenas
o gozo das memórias
das sombras
do voo em zênite
dá vida.

há que se descobrir
com que trama
haveremos de tecer
nossas asas de vida