De um livro há muito esquecido saltou hoje um antigo bilhete de metrô. Observo-o atentamente e avalio se ainda seria possível usá-lo. Não dá, está vencido. Há muito não uso o metrô. Há muito não faço muitas coisas. A vida ficou mais fácil depois que compreendi e passei a aceitar a flutuação da existência.
Quando deixei o meu lar a dois anos atrás, apenas com uma mochila nas costas, caminhava deslizante sobre um piso flutuante que havia se tornado minha vida. Não era só a minha vida de mulher fugitiva, sob medida protetiva, era também o país e este buraco fundo em que nos metemos. Eu havia acreditado que o ovo da serpente não iria eclodir. De mim ninguém saia com fome, nem toda palavra encarnava.
Mas encarnaram. Firmadas estão as palavras calúnia, voraz, perversidade, fome, morte, pobreza, genocídio e tantas outras. A mentira que caiu sobre mim, sobre aquilo que eu tão ingenuamente chamava de honra, caiu também sobre todo o país. Não existe mais verdade, só recortes de imagens e palavras montadas para parecerem engraçadas, ou embaraçosas. Eu no entanto não me engano, não poupo ninguém: não há ingênuos, apenas convictos a cata da pseudo-verdades que lhes aqueçam.
A primeira vez que levaram meu celular, no viaduto Santa Tereza, eu ainda tinha forças para correr, ir ao chão, para lutar por aquele que era o meu simbolo de território. Como um antropólogo em nova terra nova, minha bolsa, meu celular eram minha casa. Ser roubada naquele dia foi ficar sem chão, sem lar.
Na segunda vez que me roubaram o celular, seis meses depois, na minha amada Praça da Estação, um certo Rafael, belo nome de anjo, senti que o mundo era um lugar perigoso e que os homens eram criaturas das quais eu teria que tomar distancia. Essa ainda me parece uma constatação acertada.
Hoje estou aqui, organizando estes livros na estante de minha nova casa, observando esse velho bilhete de metrô, deslumbrada com o que a minha vida se tornou. Cada detalhe da decoração, a escola, a 800 metros daqui, aquele trabalho que amo, esse vinho, esse queijo, esse "Melhor de mim" da Mariza tocando no celular, e aquela menina. Ah! aquela menina!
Vou ler para ela o Neruda, ler para minha "menina morena e ágil", vou ler "para uma menina com uma flor" do Vinícius. Vou viver sem medo.
E se a vida me tirar de novo o chão, pinto asas em meus pés, que sou poeta, sou dessas.