sábado, 5 de fevereiro de 2011

Livro aberto

Dois dias e você sumida, Gwenever. Deliberadamente me deixou traduzir sozinha essa enchente de emoções que me atravessa. Não sei fazer isso. Tampouco sei ler ações e comportamentos alheios. Tenho me enganado com todos a minha volta.
Para conhecer pessoas é necessário apreender a realidade do entorno. E para apreender a realidade é necessário apreender os fatos e extrair sua essência. O problema é que fatos sempre estão misturados com pessoas e suas complexidades.
Não vejo regularidade observável no comportamento daqueles que me cercam e por isso sigo tateando às cegas, em busca de alguém em quem possa confiar. Mas ninguém é confiável o suficiente a ponto de ignorar minha incompetência existencial. Sempre coloco o outro a frente de mim mesma e quem me cerca sabe disso. Sou um imâ para egoístas e com isso sofro muito.
Esse modelo plástico de personalidade e de caráter não ajuda. Estou sempre pronta para questionar meus paradigmas e modelos mentais, afinal posso estar errada.
O outro, diante de mim, esse livro aberto, torna-se ávido leitor, imprime orelhas às minhas páginas, sublinha trechos, acrescenta glosas às margens. E eu, que era uma escritura definida, vou me tornando uma brochura manuseada e descaracterizada.
Poderia escapar a isso me mantendo fechada como um livro virgem, de folhas coladas e palavras inexploradas. Mas isso me negaria o gozo de ser traduzida, lida e relida pelos olhos dos outros. O esforço de manter a psiquê intocada me privaria da alegria de ver no olho do outro a admiração diante da beleza de minha alma. Sentimento  que não posso obter em mim mesma, posto que como um livro não posso me ler com propriedade.
Meus olhos são competentes quando se lançam para fora, para o mundo sensível. Olhar para dentro é diferente. É como identificar o movimento de neutrôns em um átomo usando raios de neutrôns. Po isso sempre ponho sob suspeita uma leitura de mim mesma uma vez que meu mundo interno é paisagem sem contrastes, fora de perspectiva. 
Diante disso escolho me revelar. Mesmo que ocasionalmente tenha que ir desfazendo as marcas deixadas em mim.
Agora vou arrastar os móveis para ver se te encontro, Gwenever. Preciso de um pouco da sua ira reptiliana para sair dessa lama em que me encontro.

Norma de Souza Lopes


Um comentário:

  1. As páginas que vão completando dia a dia este livro aberto vão se transformar daqui a pouco num compêndio tão bom de ler quanto o livro do desassosego do Pessoa. Tô gostando demais dessas idiossincrasias, Norma! Meu abraço. paz e bem.

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