Desvio
Disse "apaixonada com", e riram.
Se diz "por", afirmaram,
o certo é cair em si,
amor tem direção,
feito seta, destino,
um porquê bem amarrado.
Tropeço entre preposições e promessas,
confundo léxico e laço,
sou mulher de soltar verbos no vento
e amar sem gramática.
As coisas se movem no escuro,
aves que ninguém vê.
O tempo afunda sem alarde,
a vida que era minha, espalhada
pelas ruas onde não estou.
Apaixonada com
manhãs que abrem as janelas,
café quente que escorre a saudade,
livros que não terminam em ponto final,
dança dos dias sem ensaio,
a vida, que me quer
sem correção.
A casa cheia de vento.
Meus filhos, constelações distantes,
presenças ausentes
se acomodam na mobília,
nas cadeiras que já não arrastam no chão.
Eu os fiz inteiros,
frutas esperando a faca,
o miolo dos melões,
branco, intacto, intocado,
agora longe de minhas mãos.
Quem me amaria com toda a minha força?
Quem me tomaria com a mesma fúria
com que a água arrebata os barcos?
As marés não voltam para buscar o que deixam,
os pássaros não voltam, os pássaros.
Ser aberto é um fato, mas dói.
Preciso manter-me intacta,
fruto no galho,
a escuridão no ventre dos melões.
Fui despida, entregue,
e agora restam essas mãos
vazias na câmera escura,
prendendo fitas que ninguém mais verá.
A literatura que me toca –
o grotesco, erótico,
o belo que arde estranho, imperfeito,
o perturbador em fogo baixo.
O desejo de consumir,
ser consumida no amor,
romances que sejam porto,
e naufrágio.
O imperfeito que pede a boca, os dentes.
Delírios manuscritos.
Na escrita – me perder, me encontrar.
Ser abismos e claridade.
Sou eu quem traduz febres em palavras,
quem dança com o que falta,
quem faz do erro um lume.
Não amo só por,
amo com—
com pele, riso e fome,
com tudo que me faz errar
e, ainda assim, existir.
Quem aguenta o amor,
esse animal ferido,
essa fome sem cura?
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