DOMINGO NA CASA DA MÃE
Ontem foi aniversário de meu pai. Para variar os moldes da comemoração minha mãe conseguiu reunir filhos e netos em volta de uma feijoada pouco convincente e um bolo delicioso. Para falar em reunião comensal na casa de minha mãe é preciso mais do que anunciar um encontro, é necessário descrever o circo pândego que sua casa se torna.
Quando não estamos todos falando ao mesmo tempo, estamos debochando uns dos outros. O barulho que fazemos gera tanta confusão que o que é sério quase sempre vira piada. Uma oração de graças que faça referência às benesses do temor de Deus pode ser interrompida por um cochicho de um dos netos “eu tenho temor a Deus, posso pedir para ele um Playstation três?”. Então todos renunciam ao momento da reflexão para cair na mais sonora gargalhada. Minha mãe, mais afeita à fé e a teologia da prosperidade, responde séria ao infante –Você pode sim, pedir um Playstation três pra Deus - Mas isso não diminui o efeito das risadas.
Outra coisa que é digna de nota é a fome que antecede ao serviço do almoço. Esse sempre atrasa por causa da indolência matutina das cozinheiras e cozinheiros. Todos ficam esperando quem será o mais diligente que assumirá a cozinha. Acionamos a parafernália do almoço cerca de onze horas e por volta da uma hora da tarde a cozinha passa a receber umas dez visitas por minuto. Todos que entram, destampam as panelas, anunciam sua fome, perguntam se vai demorar, beliscam os “trupicos” até que minha mãe, insana de fome, começa a xingar a todos, alerta para idade do meu pai e para o risco de alguém assim ficar sem comer até tão tarde. Nós, que estamos à beira de fazer uma fogueira no terreiro para apressar as panelas, sabemos que o pai ainda não está morrendo de inanição, mas sabemos também que se não terminarmos o almoço minha mãe com certeza vai matar um de nós.
Servido o almoço, acalmam-se os ânimos e os pandegues recomeçam. Uma das netas comenta sua ingrata surpresa em saber que Wilian Boner e Fátima Bernardes são casados e pasmem- têm filhos trigêmeos. Um tio afirma que votou em um tal de Nulo para a presidência clicando no número oitenta e cinco da urna eletrônica, mas que não conhece o sujeito. A irmã mais velha conta que depois de chorar trinta e três vezes durante a saída das vitimas das minas chilenas, teve uma grata surpresa ao saber que os mesmos não eram seus conterrâneos das Minas Gerais mais sim “mineiros”, ou seja, trabalhadores de minas. Emenda ainda que ficava se perguntando por que esses mineiros tinham ido trabalhar tão longe.
Lá fora uma rodinha dos netos adolescentes se forma. Comentam o aniversário de quinze anos de uma delas que será na próxima semana. Riem dos ensaios, debocham dos pares compenetrados que o ritual formará. De repente a loucura da família vem à baila como assunto dos púberes. Eles começam a lembrar das brigas homéricas que já assistiram entre os irmãos. Como uma crônica esportiva, eles conseguem se lembrar de cada movimento e cada palavra que os irmão desferiram na malfada briga. Paro de longe para ouvir e me surpreendo. É terrível é a quantidade de detalhes que cada um deles conseguia se lembrar. Me pergunto como eles, tão pequenos na época de algumas dessas brigas ainda conseguem se lembram tão nitidamente dos detalhes. Me afasto do grupo e só tenho uma expressão, bem à moda adolescentes: trevas total.
Finalmente chega a hora dos parabéns – e o bolo, é claro! A irmã mais nova coloca velas de quinze anos que foram usadas na comemoração de seu aniversário, no começo do mês, no trabalho. Não que ela tenha quinze anos, mas os colegas de trabalho resolveram brincar com isso. Se era incongruente para ela, na casa dos trinta, imaginem para meu pai, com sessenta e dois. A incongruência total entre as idades leva a cunhada a trocar as velas de posição, ficando cinquenta e um. Um dos irmãos que não havia percebido o encaminhamento da situação pergunta – quem está fazendo cinquenta e um anos? Mais risadas e brincadeiras fazendo alusão à pinga 51. Meu pai permanece sério.
Minha mãe inventa um sorteio para que ninguém se sinta preterido, afinal no mês de outubro foram quatro aniversariantes. Sem contar com o fato da irmã mais nova ter concluído nesse mês o curso de enfermagem. Todo munda lá, doido para comer do bolo, e alguém tem que sair a cata de papeis e caneta para escrever os nomes dos homenageados.
A irmã mais nova acende as velas e o responsável pelos papeizinhos do sorteio ainda está lá dentro procurando caneta. A vela começa a escorrer e um dos netos afirma que não quer comer bolo com vela. Apagamos a vela e tendo chegado os papeizinhos cantamos os parabéns. Digo, cantamos uns parabéns todinho, correto e musicado. A partir do segundo a dissonância invade a sala e até atirei o pau no gato é possível ouvir.
Comemos o bolo. Eu arranco do bolso a carta de homenagem que fiz para meu pai e leio, afinal sou a escritora da família. Nem uma lágrima. Decepção total. Aqui preciso parar para um acréscimo de informação. Meu pai ficou sumido um vinte anos, teve outra família, quatro filhos do lado de lá e reapareceu a cerca de seis anos. Com a morte do meu padrasto e da esposa de lá, meu pai e minha mãe emplacaram um namoro que parece estar dando certo.
A tal carta que citei acima fazia referência a meu genitor comparado a um rio que, tendo passado muito rápido pelo leito, volta fazendo refluxo, preenchendo lacunas e blá, blá, blá. Uma coisa linda. Por isso minha decepção inicial. Como assim não chorar? Eu havia acordado de madrugada para escrever a carta, era o máximo de meu esforço de aceitação de meu pai, e ele ainda assim sem uma lágrima? Mais tarde, quando ele comentou a carta e chorou copiosamente, afirmei que agora estava satisfeita. Expliquei para ele do que os seus prantos o livraram. Sou capaz de bater num homenageado que não chore ante às minhas homenagens.
Com a chegada da tarde aos poucos os irmão começam a ir embora e minha mãe se despede satisfeita. Saímos todos com a sensação que aquela família fragmentada, partida e sofrida que fomos no passado não existe mais. Fomos muito família esse domingo de aniversário de meu pai.
Norma de Souza Lopes
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