A capa do poder
Conversando com meu irmão acerca de seu trabalho recebi de presente uma reflexão brilhante. Como ele é Consultor e Gerenciador de Crise Empresarial vive algumas circunstâncias no mínimo tensas. Uma empresa só aciona um consultor de crise quando está a beira da falência, sendo esmagada pelos credores.
Para prestar esse serviço meu irmão adota procedimentos pouco ortodoxos mais muito eficazes. Segundo ele, se uma empresa às beiras da falência tentar pagar tudo que deve antes de se reestruturar, ela certamente irá falir e não pagará a todos.
Nessas circunstâncias é preciso muita energia para lidar com credores. Eles geralmente aparecem rugindo como leões, seguidos de agentes judiciários e munidos de ações de arresto. Meu irmão aponta nessas pessoas a presença de uma "capa do poder". E segundo ele, é preciso retirar essa capa para ajudar seu cliente a retomar o crescimento da empresa e saldar suas dívidas.
Ele me contou a ocasião em que uma bela moça, representante de credores da rede de supermercados que gerencia, chegou com seu esquadrão e a tal ação, às vésperas da data de pagamento, para retirar mercadorias, até que perfizessem o valor da dívida.
A execução dessa ação seria a morte para aquela unidade do supermercado em questão. É preciso lembrar que nessas datas, próximas ao quinto dia útil, os supermercados vendem quase tudo, uma vez que os brasileiros ainda fazem compras para estocam alimentos em suas casas (prevendo certamente uma inflação galopante do passado ou uma hecatombe nuclear).
No esforço de barrar a ação de arresto ele ofereceu como pagamento um carro da empresa que estava no pátio. A moça não aceitou a negociação porque uma parte ínfima da dívida permaneceria. Solicitou mais prazo argumentando que os produtos que ela retiraria não teriam o mesmo valor que tinham nas gôndolas do supermercado. Apelou para o bom censo, afirmando que a atitude predatória da cobrança impediria outros credores de receber. A moça, permanecendo impassível, afirmou que esse era o seu trabalho e que não sairia dali sem a execução da ação.
Enquanto apelava até para os sentimentos da moça meu irmão executava o plano B: acionar contatos. Ligava para delegados, advogados e outros profissionais no esforço de evitar o pior. Conta que a frieza dos olhos da moça só se turvou quando ele a acusou de ser muito infeliz. Não riam. A moça bradou com todas as forças que era muito feliz e que por isso mesmo executaria a ação. Mas o leve tremular da capa de poder não passou despercebido ao meu irmão. Isso o lembrou que em tudo e em todos há fissuras, falhas, medos e erros.
Ele então voltou aos documentos e qual não foi a sua grata surpresa ao encontrar lá, escondido entre os zeros, dois reais a mais que a dívida original de seu cliente. O impasse, que já durava meia hora, pareceu se resolver. Voltou a ligar para o advogado e o mesmo, direto do fórum, fez um contato como juiz que havia concedido a ação argumentando acerca do erro. o juiz autorizou a cassação da liminar.Ainda assim era necessário tempo para que chegasse ao local o documento que impedia a execução da ação. Esse documento seria uma liminar que suspenderia o processo em questão. Baseado em: UM ERRO DE DOIS REAIS.
E eis a reflexão com a qual ele me presenteou: o poder é uma capa transferida de pessoa para pessoa. O povo passa essa capa ao presidente, o presidente passa-a ao judiciário. O judiciário, na pessoa do juiz, passa para o agente judiciário (que às vezes pode também ser aquele seu vizinho endividado e viciado em jogo). O agente judiciário passa a capa para uma bela e arrogante moça da empresa de cobrança.
Na circunstância que relato aqui meu irmão obteve o documento de cassação da ação. Então a capa que estava sobre o agente foi retirada, tornando-o apenas um cidadão comum, sem nenhum poder. Conseqüentemente a capa da moça da empresa de cobrança também foi retirada, derrubando sua arrogância e prepotência. Nesse momento ela também passou a ser um cidadão comum.
REtato tudo isso apenas para lembra que o povo, representado nessa crônica por meu irmão e seu cliente, precisa sempre se lembrar que foi ele quem colocou a tal capa do poder. Se porventura seu uso for abusivo, violento ou inadequado, ela deve ser retirada por força da mesma lei que a colocou. Daí é só pedir para as moças, os agentes, os juízes e o presidente para se retirarem.
REtato tudo isso apenas para lembra que o povo, representado nessa crônica por meu irmão e seu cliente, precisa sempre se lembrar que foi ele quem colocou a tal capa do poder. Se porventura seu uso for abusivo, violento ou inadequado, ela deve ser retirada por força da mesma lei que a colocou. Daí é só pedir para as moças, os agentes, os juízes e o presidente para se retirarem.
Norma de Souza Lopes