domingo, 21 de novembro de 2010

A capa do poder

Conversando com meu irmão acerca de seu trabalho recebi de presente uma reflexão brilhante. Como ele é Consultor e Gerenciador de Crise Empresarial vive algumas circunstâncias no mínimo tensas. Uma empresa só aciona um consultor de crise quando está a beira da falência, sendo esmagada pelos credores. 
Para prestar esse serviço meu irmão adota procedimentos pouco ortodoxos mais muito eficazes. Segundo ele, se uma empresa às beiras da falência tentar pagar tudo que  deve antes de se reestruturar, ela certamente irá falir e não pagará a todos. 
Nessas circunstâncias é preciso muita energia para lidar com credores. Eles geralmente aparecem rugindo como leões, seguidos de agentes judiciários e  munidos de ações de arresto. Meu irmão aponta nessas pessoas a presença de uma "capa do poder". E segundo ele, é preciso retirar essa capa para ajudar seu cliente a retomar o crescimento da empresa e saldar suas dívidas. 
Ele me contou a ocasião em que uma bela moça, representante de credores da rede de supermercados que gerencia, chegou com seu esquadrão e a tal ação, às vésperas da data de pagamento, para retirar mercadorias, até que perfizessem o valor da dívida. 
A execução dessa ação seria a morte para aquela unidade do supermercado em questão. É preciso lembrar que nessas datas, próximas ao quinto dia útil, os supermercados vendem quase tudo, uma vez que os brasileiros ainda fazem compras para estocam alimentos em suas casas (prevendo certamente uma inflação galopante do passado ou uma hecatombe nuclear).
No esforço de barrar a ação de arresto ele ofereceu como pagamento um carro da empresa que estava no pátio. A moça não aceitou a negociação porque uma parte ínfima da dívida permaneceria. Solicitou mais prazo argumentando que os produtos que ela retiraria não teriam o mesmo valor que tinham nas gôndolas do supermercado. Apelou para o bom censo, afirmando que a atitude predatória da cobrança impediria outros credores de receber. A moça, permanecendo impassível, afirmou que esse era o seu trabalho e que não sairia dali sem a execução da ação.
Enquanto apelava até para os sentimentos da moça meu irmão executava o plano B: acionar contatos. Ligava para delegados, advogados e outros profissionais no esforço de evitar o pior. Conta que a frieza dos olhos da moça só se turvou quando ele a acusou de ser muito infeliz. Não riam. A moça bradou com todas as forças que era muito feliz e que por isso mesmo executaria a ação. Mas o leve tremular da capa de poder não passou despercebido ao meu irmão. Isso o lembrou que em tudo e em todos há fissuras, falhas, medos e erros. 
Ele então voltou aos documentos e qual não foi a sua grata surpresa ao encontrar lá, escondido entre os zeros, dois reais a mais que a dívida original de seu cliente. O impasse, que já durava meia hora, pareceu se resolver. Voltou  a ligar para o advogado e o mesmo, direto do fórum, fez um contato como juiz que havia concedido a ação argumentando acerca do erro. o juiz  autorizou a cassação da liminar.Ainda  assim era necessário tempo para que chegasse ao local o documento que impedia  a execução da ação.  Esse documento seria uma liminar que suspenderia o processo em questão. Baseado em: UM ERRO DE DOIS REAIS.
E eis a reflexão com a qual ele me presenteou: o poder é uma capa transferida de pessoa para pessoa. O povo passa essa capa ao presidente, o presidente passa-a ao judiciário. O judiciário, na pessoa do juiz, passa para o agente judiciário (que às vezes pode também ser aquele seu vizinho endividado e viciado em jogo). O agente judiciário passa a capa para uma bela e arrogante moça da empresa de cobrança. 
Na circunstância que relato aqui meu irmão obteve o documento de cassação da ação. Então a capa que estava sobre o agente foi retirada, tornando-o apenas um cidadão comum, sem nenhum poder. Conseqüentemente a capa da moça da empresa de cobrança também foi retirada, derrubando sua arrogância e prepotência. Nesse momento ela também passou a ser um cidadão comum. 
REtato tudo isso apenas para lembra que o povo, representado nessa crônica por meu irmão e seu cliente, precisa sempre se lembrar que foi ele quem colocou a tal capa do poder. Se porventura seu uso for abusivo, violento ou inadequado, ela deve ser retirada por força da mesma lei que a colocou. Daí é só pedir para as moças, os agentes, os  juízes e o presidente para se retirarem. 

Norma de Souza Lopes

sábado, 20 de novembro de 2010

Sobre memórias, calças e modas


Às vésperas de meus quarenta anos posso afirmar que já passei por mais de vinte modelos de calças diferentes. Apesar da obscuridade da década de 70 (nasci em 71 e só me lembro de fragmentos dessa década) sei que vesti muita Us Top que, ao contrário das roupas de nycron da época, desbotava e perdia o vinco. Eu era muito pequena para entender por que uma calça azul e desbotada poderia me dar liberdade, mas acreditava na propaganda que cantava as maravilhas do índigo blue.
Estas calças, de um jeans duro e encorpado, fazia com que eu, uma menina miúda e descabelada, me sentisse gente grande e bem vestida. Me lembro de uma ocasião em que minha mãe me vestiu assim para tirar foto 3X4 para documentos (não me pergunte a importância de uma calça jeans numa foto 3X4, não sei responder). Nós caminhávamos pela rua até chegar a loja de fotografias, e minha mãe conversava comigo. Essa é uma das poucas ocasiões em que me lembro de minha mãe conversando comigo como adulta. Nada me tirava a impressão que era por causa das tais calças Us Top.
A década de 80 com suas calças baggy, semibaggy e  calça balão faziam com que eu e minhas amigas corrêssemos  para os camelôs afim de comprar cópias da Fórum e da Zoomp, nos esforçando para parecer mais chic. A inflação galopante e a falta de grana geral fazia com que nós e praticamente todos os office-boys da cidade nos desdóbrassemos para ter um ou outro exemplar original. Comprávamos tudo em seis prestações sem juros.
Na década de noventa as saint tropez, cigarretes e as leggings seguiram marcando nossos corpos esculturais e às vezes até delineando corpos não tão esculturais. Essas calças lisas, escovadas, lixadas e  rasgadas acabaram evoluindo até chegar no que temos hoje: as cinturas baixas. 
Passei essa última década esperando desesperadamente pelo fim da moda das cinturas baixas. Suspeito  que minha antipatia por esse modelo se deve à forma que meu corpo foi tomando nos últimos trinta anos. Intimamente me alegro toda vez que vejo alguém afirmar que as moças dessa geração não tem cintura porque usaram demais as calças de cintura baixa. Se eu ainda tivesse cintura poderia até emitir um sonoro bem-feito para essas mocinhas que revelam até os  pêlos pubianos acima dos zíperes de suas "antifits". Inveja à parte, me recuso a radicalizar como algumas amigas softs que espremem seus largos quadris dentro desse vestuário. 
Por não aderir a essa moda passei a ultima década torcendo para que as passarelas subissem a cintura das calças e emplacassem algo mais adequado para os manequins quarenta e quatro. Vibrei quando a Fernanda Lima, no papel de Maria Bô, de Pé na jaca, começou a expor sua figura com calças de cintura alta. Não preciso ser noveleira de plantão para saber o quanto as novela são laboratórios de moda. Estava certa que as próximas coleções me atenderiam.
No entanto minha surpresa foi muito grande ao perceber que ao invés das cintura subirem, desceram os gaviões. A calça saruel, em voga entre homens e mulheres atualmente, seguiu na contramão do que eu esperava. Tudo bem que a maioria dos jovens na casa dos vinte usam e acham bonito. Mas tente vestir uma saruel quarenta e quatro. O tosco modelito nos cai como tão bem como fraldas. 
Não sei porque ligo. Sou uma intelectual quarentona que já leu todos os frankfurtianos e conhece os efeitos maléficos da indústria da moda. Posso muito bem bem vestir um sári confortável e me sentir bem livre dos tentáculos da mass media. Mas o que pega é essa saudosa referência do anos oitenta. Tenho me sentido tentada a trazer a memória tudo que me trouxe alegria naquela década. E as calças cintura alta era uma delas. 

Norma de Souza Lopes

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Fotografia da intransigência

Nessa semana vivi uma circunstância constragedora em um órgão público. O que aconteceu que me fez refletir acerca do que as pessoas fazem quando estão de posse do poder.Fui até a  escola para efetuar a matricula  de meu filho e no bilhete havia uma solicitação de duas fotos para efetivação da tal matricula. Na fila da secretaria descobri que em minha carteira havia 1 foto e o cartaz, com letras grandes e grifadas de vermelho dizia: A matricula só será efetivada mediante as duas fotos: NÃO INSISTA!". Pendurei uma cara de paisagem enquanto a fila andava e ao chegar ao balcão abri pacientemente a carteira, retirei de lá a embalagem vermelha de fotos da familia e  e soltei aquela expressão surpresa:
__ OH! Só trouxe uma foto! 
A expressão de surpresa não colou. A secretaria me avisou secamente que a matricula não seria efetuada. Iniciei minha estratégia de negociação. Afirmei que meu filho poderia trazer a segunda foto depois que eu não poderia voltar, pois havia faltado ao trabalho para estar ali e não faria isso novamente. Lembrei-a que a foto não é documento legalmente exigido para matrícula. A secretaria permaneceu seca e afirmou que não faria a matrícula.
Como sabia que a fila atrás de mim não parava de crescer solicitei da moça uma declaração de comparecimento, pois iria recorrer. (Será que existe algum servidor público estadual que teme recurso?)
A moça disse que ia demorar e eu, com cara de poucos amigos, me finquei no balcão a fim de que ela percebesse minha disposição para esperar. Quando ela percebeu que eu não desistiria afirmou que a tal declaração só seria retirada na sala da direção. Perguntei onde era e renovei as esperanças em efetivar a matricula sem ter que voltar depois. 
Ao me sentar com a diretora expus minha demanda e soube que a ordem para não efetuar a matricula sem as tais fotos havia partido da mesma. 
Fui orientadora educacional por muito tempo e sei que esses procedimentos são um esforço da escola para garantir que todas as carteiras de identificação sejam feitas. No entanto sei que esse impedimento é ilegal e improdutivo, uma vez que quem não tem foto acaba obrigando a escola estender os prazos de qualquer forma, pois a matricula não pode ser negada.
Me espantei com a veemência da diretora em me negar o direito à matricula e mais ainda com sua ira em me responder quando solicitei a declaração de comparecimento:
___ Não vou te dar nada! Você não fez a matricula!
___ Mas se você me impediram de fazer....
___ Não vou te dar nada!
Argumentei me comprometendo a mandar a segunda foto através de meu filho uma vez que ele, como aluno, ia a escola todos os dias poderia entregar a tal foto com facilidade. Não consegui nada além da expressão raivosa:
___ Eu não vou brigar com você, mas você não vai fazer a matricula!
Emiti um quase murmurio:
___ Eu não estou brigando, quero apenas resolver meu problema.
Ela permaneceu irredutível.
Me lembrei que, se fosse recorrer, precisaria de provas de que estive na instituição. Me senti amarrada: se ela não me desse a declaração, como eu provaria que estive lá? No meus tempos de analista de educação já vi muita diretora escapando da advertência porque afirmava que nunca tinha visto o pai de aluno.  
A circunstância me obrigava a tomar atitude drásticas. Alertei-a que chamaria a polícia para, a partir do registro do boletim de ocorrência, provar que eu havia tentado matricular meu filho. 
Ela respondeu áspera:
___ Pode chamar!
O policial chegou meia hora depois e eu expliquei o que estava acontecendo. Ele já iniciou a conversa afirmando que sua filha estudara ali e que ele gostava das rigidez da escola pois lá tudo funcionava.  - XI, TOU FERRADA!-  pensei comigo.
Fomos novamente encaminhados para a sala da direção e diretora reiniciou a carga:
__ Se nós aceitarmos todas as matrículas sem a fotos, vamos ficar sem fazer as carteiras de identificação até o meio do ano.
__ Estou assegurando que meu filho trará a foto amanhã. É muito mais fácil para ele. Para mim no entanto será uma nova falta aos trabalho. Você está partindo do principio que ninguém é confiável, mas isso não é verdade.
__ Quer dizer que você não tem tempo para seu filho?
__ Que tipo de argumento é esse? Você está afirmando que eu estou tentando resolver isso hoje porque não em dedico a meu filho? Ou quer apenas me confrontar na frente do policial? Isso é completamente desnecessário!
Eu, que ainda alimentava uma pequena esperança de que a matricula fosse efetuada naquele dia percebi que tudo era inútil. A mulher não iria ceder. Convidei o policial para deixar a sala da direção e lembrei a ela que eu só precisava mesmo de uma prova de que eu estive ali e o Boletim de Ocorrência se prestaria a isso. 
Já do lado de fora uma secretária veio correndo dizer que não era para dizer no B.O. que eu havia sido impedida de matricular meu filho porque ela estava autorizando que eu fizesse a mesma até a terça-feira da semana seguinte.
Tive que rir. 
___ Como assim não me impediu? Eu estava saindo dali sem efetivar a matrícula por causa de uma foto. Eu  já havia entregado duas fotos no começo do ano. Pra que tanta foto meu Deus?
Levei um sermão do policial, questionando meu filho por não ter me avisado das fotos.
__ Mas ele avisou! Eu pensei que tinha as fotos na carteira, foi um engano, não um atentado ao patrimônio público.
Argumentei acerca de todos os direitos de cidadania que havia sido feridos naquela ocasião e o policial começou  a elogiar a policia mineira por sua competência e rigor.  Emendei um elogio a policia mas, já exasperada pelo ocorrido, levantei os braços em direção a escola e bradei:
___ Isso aqui é uma escola, não é uma instituição policial!
Peguei o número do B.O. e deixei a escola frustrada, envergonha e sem energia. Não sabia se o esforço de quase duas horas havia valido a pena. Ainda havia o risco de recorrer na secretaria da educação e expor meu filho a retaliações.  Com uma diretora tão intransigente não ficaria surpresa se isso acontecesse.
Como não sou de me intimidar me sentei com meu filho, expliquei o ocorrido e pedi para ele me contar qualquer eventualidade:
___ Se alguém respirar mais alto perto de você, me conte, tá!
E estou postando o recurso hoje. 

Norma de Souza Lopes

sábado, 6 de novembro de 2010

GRACIOSA

Por nada me privaria do direito a essa homenagem de 15 anos. Mas confesso que precisei pesquisar para descrever Karina. 
Buscando o significado dos nomes, soube que  Karina é um nome grego que significa graciosa. E como todos sabem, a palavra graça é cheia de sentidos: assim como Karina. 
Em tudo é possível ver graça em Karina. Naquilo que a graça é benevolência, podemos ver a Karina  que  acolhe a mãe, que cuida dos irmãos, que serve aos amigos. Podemos ainda ver sua graça quando se presta às vezes como secretária do pai.
Quando sua risada sonora  ecoa pela casa é certo que o seu brincar alcançou alguém ou algo. É impossível não gargalhar com ela nesses momentos.
Sua vaidade delicada, que a uns parece inaceitável, tem feito dela cada vez mais  única. E cada vez mais linda. 
Não sei se você se tornou graciosa por causa do nome ou se Deus inspirou seu pais ao nomeá-la mas gostaria de te pedir: continue derramando sua graça entre nós. Plante sementes de bondade, permita que elas cresçam e frutifiquem, caminhe alegre pela vida.
Ame verdadeiramente a si mesma, valorizando-se em todos os sentidos, tente fortalecer sua mente através de boas leituras, boas amizades, navegando em águas tranqüilas e se fortalecendo para enfrentar as águas turbulentas, sem se deixar ferir.
Não sofra com quem não te entende , não te aceita, ou não te ama. Seja o que Deus escolheu que você fosse em essência: KARINA GRACIOSA

Norma de Souza Lopes

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Cartas do psicoclaustro

Renatinha meu amor.
No quarto ao lado ao meu descobri Renatinha. Meio anjo, meio fada, meio moça. Nem sei por que eu a amava tanto. Seria pela fé com que tocava minha cabeça e dizia:
- Você me perdoa, minha neta?
Ouvindo uma resposta positiva emplacava outra pergunta:
- Posso orar por você? – Que o Senhor Jesus te abençoe e te guarde e que mantenha toda sua família bem.
Às vezes aparecia dizendo:
- Sai daqui agora!
Ou:
- Que palhaçada! Para alguém invisível que ela via no nada.
Sempre sentia muita falta de minhas meninas no psicoclautro. Mas reparei que quando Renatinha aparecia a dor da falta das minhas meninas diminuia.
Depois de um tratamento estranho, com nome bonito e a base de choque elétrico, Renatinha passou a sorrir mais e a dizer períodos inteiros. Amei-a mais ainda.
Um dia na fila de remédio sentei-a em meu colo e ensinei, como havia feito com minhas filhas a muito, que ser feliz era uma escolha.
Não sei se ela aprendeu, mas deu belas risadas.
Tinha o habito de referir-se a si mesma como Nanata. Sussurrava o tempo todo:
- Nanata, não derrame o café!
- Nanata, coma todo o pão!
Era o superego mais vistoso que eu já conheci.
Passei a participar dessas conversas consigo mesma quando entendi a dinâmica. Derramei o leite durante o café da manhã e emendei:
- Falei que não era para entornar o leite, Nanata!
E ela, de cara, respondeu:
- Entornou, vai ter que enxugar. Tá, Nanata!

Olhando firmemente para mim e sorrindo.
Esse sorriso encheu aquele meu dia e trago comigo até hoje, três anos depois de deixar o psicoclaustro.

Norma de Souza Lopes
A Flor de carrapicho

Passei algumas férias em Cordisburgo, na casa de uma prima chamada Zezé. Era uma época boa por que podia comer com fartura e ainda escapava das varadas da mãe.
A magia do tempo da infância fazia com que nós meninas acreditássemos nas histórias da avó. Ela contava que todos os bebês do mundo nasciam da flor amarela do carrapicho. Mas não éramos muito confiadas, queríamos empreender uma busca à tal flor que estivesse prenhe de uma criancinha.
Embrenhamos no mato por dois dias para procurar e nada encontrávamos. Estávamos achando a busca chata quando Zezé teve uma idéia: e se a flor tivesse crescido em cima de uma grande pedra que havia no meio do pasto?
Debaixo da pedra havia uma pequena caverna que era usada às vezes como espaço para ordenha das vacas. Olhando de baixo para cima era possível concluir que seria possível até secar café lá em cima.
Tive medo de subir mas Zezé, em seu habitat natural, determinada a achar a flor amarela com bebê dentro começou a se encarapitar na pedra. Com engenhosidade juntou dois bambus e já estava na metade da escalada quando escorregou e caiu estatelada em um poço de lama do tipo de areia movediça.
Corri desesperada pelo pasto chamando pelo meu tio. Tinha muito medo que a prima morresse soterrada naquela lama. Chegando na casa soube que o tio estava resolvendo um problema grave do qual ela não podia tomar conhecimento. A verdade era que justo neste momento a mãe de Zezé estava dando à luz e o pai é que era o parteiro.
O tio deixou as tias com a parturiente e saiu em disparada para socorrer Zezé. Com um pedaço de bambu puxou-a do soterramento de lama e levou-a até o monjolo para que ela pudesse se lavar.
Avisou que a Zezé que a mãe não podia saber do acidente por que estava doente. Meia hora depois, já em casa, nós duas ouvimos um sonoro choro de bebê.
Sentamos desconsoladas na escada da varanda e ficamos lançando pedras ao longe, mão no queixo, tentando adivinhar como a tia tinha chegado primeiro na flor amarela de carrapicho. Norma de Souza Lopes

Norma de Souza Lopes
Carta ao meu pai

Hoje eu escrevo sobre meu pai que faz aniversário. Não é algo difícil de fazer. É muito fácil falar de alguém que tem sonhos. Meu pai é um home capaz de sonhar com tudo para um mundo melhor: fortuna, fé, conversão, perdão, cura, relacionamento com Deus, sucesso no trabalho. Nada escapa a sua imensa capacidade de sonhar.
Tenho atravessado meus dias sendo acompanhada por pessoas de pés tão fincados no chão que mais parecem raízes. A possibilidade de alguém assim construir um mundo melhor é tão
pequena que ás vezes tenho vontade de aplicar meu pai a eles a fim de que, como um bálsamo de sonhos, ele possa curar tais pessoas.
Outra coisa que é fácil de admirar em meu pai é a sua capacidade de fazer e refazer. Esse meu genitor passou a vida levantando casas e edifícios em muitos lugares e é notoriamente conhecido por isso.
Além deste fazer, meu pai tem demonstrado uma linda capacidade de refazer caminhos, reconstruir histórias. Como um rio que passou muito rápido pelo leito, meu pai seguiu correndo a vida e, eventualmente, deixou lacunas, espaços não preenchidos no leito do rio da vida. Hoje, com muita fé e menos pressa ele volta, como um refluxo de águas, completando os espaços vazios do leito.
Pai, desejo que você tenha um lindo aniversário, que você possa ser plenificado por Deus com paz e contentamento. Desejo ainda que você tenha mais tempo para desfrutar das coisas não vividas com nossa família.
Te agradeço por orar por mim e por meus irmãos(os daqui e os de lá), mesmo quando não somos capazes de ser os filhos que você deseja ter.

Norma de Souza Lopes
DOMINGO NA CASA DA MÃE


Ontem foi aniversário de meu pai. Para variar os moldes da comemoração minha mãe conseguiu reunir filhos e netos em volta de uma feijoada pouco convincente e um bolo delicioso. Para falar em reunião comensal na casa de minha mãe é preciso mais do que anunciar um encontro, é necessário descrever o circo pândego que sua casa se torna.

Quando não estamos todos falando ao mesmo tempo, estamos debochando uns dos outros. O barulho que fazemos gera tanta confusão que o que é sério quase sempre vira piada. Uma oração de graças que faça referência às benesses do temor de Deus pode ser interrompida por um cochicho de um dos netos “eu tenho temor a Deus, posso pedir para ele um Playstation três?”. Então todos renunciam ao momento da reflexão para cair na mais sonora gargalhada. Minha mãe, mais afeita à fé e a teologia da prosperidade, responde séria ao infante –Você pode sim, pedir um Playstation três pra Deus - Mas isso não diminui o efeito das risadas.

Outra coisa que é digna de nota é a fome que antecede ao serviço do almoço. Esse sempre atrasa por causa da indolência matutina das cozinheiras e cozinheiros. Todos ficam esperando quem será o mais diligente que assumirá a cozinha. Acionamos a parafernália do almoço cerca de onze horas e por volta da uma hora da tarde a cozinha passa a receber umas dez visitas por minuto. Todos que entram, destampam as panelas, anunciam sua fome, perguntam se vai demorar, beliscam os “trupicos” até que minha mãe, insana de fome, começa a xingar a todos, alerta para idade do meu pai e para o risco de alguém assim ficar sem comer até tão tarde. Nós, que estamos à beira de fazer uma fogueira no terreiro para apressar as panelas, sabemos que o pai ainda não está morrendo de inanição, mas sabemos também que se não terminarmos o almoço minha mãe com certeza vai matar um de nós.

Servido o almoço, acalmam-se os ânimos e os pandegues recomeçam. Uma das netas comenta sua ingrata surpresa em saber que Wilian Boner e Fátima Bernardes são casados e pasmem- têm filhos trigêmeos. Um tio afirma que votou em um tal de Nulo para a presidência clicando no número oitenta e cinco da urna eletrônica, mas que não conhece o sujeito. A irmã mais velha conta que depois de chorar trinta e três vezes durante a saída das vitimas das minas chilenas, teve uma grata surpresa ao saber que os mesmos não eram seus conterrâneos das Minas Gerais mais sim “mineiros”, ou seja, trabalhadores de minas. Emenda ainda que ficava se perguntando por que esses mineiros tinham ido trabalhar tão longe.

Lá fora uma rodinha dos netos adolescentes se forma. Comentam o aniversário de quinze anos de uma delas que será na próxima semana. Riem dos ensaios, debocham dos pares compenetrados que o ritual formará. De repente a loucura da família vem à baila como assunto dos púberes. Eles começam a lembrar das brigas homéricas que já assistiram entre os irmãos. Como uma crônica esportiva, eles conseguem se lembrar de cada movimento e cada palavra que os irmão desferiram na malfada briga. Paro de longe para ouvir e me surpreendo. É terrível é a quantidade de detalhes que cada um deles conseguia se lembrar. Me pergunto como eles, tão pequenos na época de algumas dessas brigas ainda conseguem se lembram tão nitidamente dos detalhes. Me afasto do grupo e só tenho uma expressão, bem à moda adolescentes: trevas total.

Finalmente chega a hora dos parabéns – e o bolo, é claro! A irmã mais nova coloca velas de quinze anos que foram usadas na comemoração de seu aniversário, no começo do mês, no trabalho. Não que ela tenha quinze anos, mas os colegas de trabalho resolveram brincar com isso. Se era incongruente para ela, na casa dos trinta, imaginem para meu pai, com sessenta e dois. A incongruência total entre as idades leva a cunhada a trocar as velas de posição, ficando cinquenta e um. Um dos irmãos que não havia percebido o encaminhamento da situação pergunta – quem está fazendo cinquenta e um anos? Mais risadas e brincadeiras fazendo alusão à pinga 51. Meu pai permanece sério.

Minha mãe inventa um sorteio para que ninguém se sinta preterido, afinal no mês de outubro foram quatro aniversariantes. Sem contar com o fato da irmã mais nova ter concluído nesse mês o curso de enfermagem. Todo munda lá, doido para comer do bolo, e alguém tem que sair a cata de papeis e caneta para escrever os nomes dos homenageados.

A irmã mais nova acende as velas e o responsável pelos papeizinhos do sorteio ainda está lá dentro procurando caneta. A vela começa a escorrer e um dos netos afirma que não quer comer bolo com vela. Apagamos a vela e tendo chegado os papeizinhos cantamos os parabéns. Digo, cantamos uns parabéns todinho, correto e musicado. A partir do segundo a dissonância invade a sala e até atirei o pau no gato é possível ouvir.

Comemos o bolo. Eu arranco do bolso a carta de homenagem que fiz para meu pai e leio, afinal sou a escritora da família. Nem uma lágrima. Decepção total. Aqui preciso parar para um acréscimo de informação. Meu pai ficou sumido um vinte anos, teve outra família, quatro filhos do lado de lá e reapareceu a cerca de seis anos. Com a morte do meu padrasto e da esposa de lá, meu pai e minha mãe emplacaram um namoro que parece estar dando certo.

A tal carta que citei acima fazia referência a meu genitor comparado a um rio que, tendo passado muito rápido pelo leito, volta fazendo refluxo, preenchendo lacunas e blá, blá, blá. Uma coisa linda. Por isso minha decepção inicial. Como assim não chorar? Eu havia acordado de madrugada para escrever a carta, era o máximo de meu esforço de aceitação de meu pai, e ele ainda assim sem uma lágrima? Mais tarde, quando ele comentou a carta e chorou copiosamente, afirmei que agora estava satisfeita. Expliquei para ele do que os seus prantos o livraram. Sou capaz de bater num homenageado que não chore ante às minhas homenagens.

Com a chegada da tarde aos poucos os irmão começam a ir embora e minha mãe se despede satisfeita. Saímos todos com a sensação que aquela família fragmentada, partida e sofrida que fomos no passado não existe mais. Fomos muito família esse domingo de aniversário de meu pai.


Norma de Souza Lopes