Ele quase morreu afogado duas vezes. Ou três vezes, não me lembro bem. Mas às vezes que me lembro são como um sopro na névoa que é a minha infância. Ele devia ter um cinco anos e a minha mãe já cultivava essa mania de recolher água de chuva para economizar. Eu já te disse que minha mãe foi a primeira ambientalista que conheci? A casa tinha dois cômodos com cobertura de laje e dois de amianto. A varanda formava um "L" com a casa e tinha cobertura de laje também. Quando as coisa apertavam nos vivíamos nos dois cômodos de laje e ela alugava os de cobertura de amianto. As coisas deviam estar muito difíceis pois ela estava trabalhando fora, os dois cômodos não estavam alugados para ninguém e nós três ficávamos sozinhos o dia inteiro. Eu sei, tinha dito que eramos quatro mas a minha irmã caçula ficava na casa de minha avó. Os vizinhos ficavam encarregados de "correr o olho" sobre nós, o que significava na verdade que ela chegaria com um relatório das nossas atrapalhadas e ia distribuir pancada em todo mundo. Tinha até um ritual: ela chegava, fazia um mexido com o resto do almoço que havia cozinhado às quatro horas da manhã, antes de sair para o trabalho e depois falava mansamente "hoje tem marmelada?". Daí era a fila para a pancadaria. Eu não costuma ficar esperando. Saia gritando pelo terreiro, pedindo para não apanhar até o vizinho da esquerda subir no muro, o único muro que tínhamos porque ele era mais abastado, e perguntar o que estava acontecendo. Isso não impedia que eu apanhasse, só adiava um pouco as coisas. Era medonha a forma com que ele lidava com essas surras. Ficava parado, sem emitir nenhum som, escutando os gritos dela e esperando acabar. A única coisa que vazava era o movimento dos músculos do rosto que qualquer um podia ver que era ódio.
Mas eu ia contar das vezes que ele quase se afogou. A varanda tinha uma escada de cinco degraus porque devia ter um um metro de altura. Minha mãe colocava um desse tambores de óleo diesel de duzentos litros debaixo da calha de chuva e no fim de semana lavava toda a roupa da casa com essa água. Ela se sentava no chão, com as pernas em volta de uma bacia de zinco e passava horas esfregando e enxaguando aquele roupeiro sujo de criança. Mas choveu num dia em que ela estava trabalhando e ele, por traquinagem, resolveu nadar dentro do tambor. Como ele era pequeno e magro foi ao fundo imediatamente e eu o irmão mais novo começamos a gritar porque não conseguíamos tirá-lo de lá. Seu Juca, o vizinho da frente, ouviu nossos gritos e deu uma carreira tão grande que nem parecia ter sessenta anos. Pinçou ele lá de dentro, colocou-o de bruços no chão da varanda e deu uns tapões em suas costas até ele começar a tossir a água que tinha engolido. Acho que nós só entendemos a presença da morte uns cinco anos depois, numa novena da casa de Seu Juca, quando ele relembrou o acidente. Acho que nem preciso contar que o couro comeu solto naquele dia.
A outra vez em que ele quase se afogou também envolvia uma traquinagem. Nós eramos criados soltos mesmo. Apesar das meninas de minha época não circularem muito eu tinha o privilégio de ter dois irmãos mais novos que me levavam para as aventuras. Nosso bairro ficava na fronteira de umas fazendas e nós havíamos aprendido a andar por lá, catando lenha quando não tinha gás de cozinha e catando bosta de boi para minha mãe colocar nas plantas que ela cultivava em latas. Até hoje ela tem um jardim de lata. Às vezes a gente inventava passear pelos pastos das fazenda, atravessando valas erodidas pela chuva e cobertas de mato, fingindo que eram túneis e nadando em um desses açudes que os fazendeiros fazem para dar de beber ao gado ou molhar as hortas. Esse em especial se chamava Mausa. Pensando hoje sobre isso acho que ele ganhou esse nome em alusão a nocividade de suas águas. Alguém deve ter dito "Essas águas são malsãs" e a corruptela apelidou logo de Mausa. Nas primeiras vezes que nós entramos na água ainda não conhecíamos a topografia do tal açude. Tínhamos só que lidar com a lama que endurecia o cabelo. Se a mãe visse descobria tudo e descia o cacete. Foi ele que demarcou o perigo. No meio da Mausa havia um poço com uns vinte metros de profundidade. Já devia estar lá, cheio d'água, quando o fazendeiro decidiu cavar. Ele era o único que tinha coragem de ir até o meio. De longe nós vimos ele chapinar na água, subindo e descendo cada vez mais demorado, até se agarrar em uns ramos de taboa e se afastar do fosso em que se metera. Dessa vez nós sabíamos que ele tinha passado perto da morte. Estivemos assustados por uns meses, sem sair para longe. Mas logo esquecemos e voltamos nadar na Mausa, andar pelas fazendas procurando nascentes e gabiroba.
A terceira vez que ele quase se afogou foi em uma cachoeira. Eu não estava junto. Um amigo chamado Jerônimo salvou-o do afogamento. Este Jerônimo morreu eletrocutado há pouco tempo, acho que fazendo um gato de energia elétrica. Por isso e por um monte de coisas Jerônimo foi o primeiro herói de meu irmão. Eu já não estava junto porque assim que fiz quatorze anos comecei a trabalhar e formei minha própria gangue.
NSL
19/01/15