TEMPO PSICANALÍTICO, RIO DE JANEIRO, V.40.2, P.???-???, 2008
JAMES JOYCE: O AUTO-RETRATO
"A crença sintomática faz com que o enigma incida inicialmente sobre o pai. Se um enigma é “uma enunciação da qual não se acha o enunciado” (LACAN, [1975-1976] 2007: 65), Um retrato do artista quando jovem nos mostra esse sentimento de perplexidade e estranheza que a voz e as injunções paternas provocam em Stephen durante o passeio por Cork. Na medida em que não opera no sentido da constituição do campo dos ideais do eu (do bom cavalheiro, do bom católico, do homem viril, etc.), a voz paterna apresenta-se como uma “ressonância-oca”, uma espécie de ressonância significante esvaziada de significação que opera como uma pura sonoridade e que não deixará de ser determinante na construção joyceana da escritura. Se na Metáfora Paterna o significante do Nome-do-Pai substituise ao desejo da mãe e esse desejo é significado ao sujeito, aqui o enigma do desejo não é significado ao sujeito, ele permanece em seu estatuto de enigma. A operação metafórica cede lugar a movimento metonímico, haja vista a construção das listas de nomes, tentativas de localização e de inserção em uma linhagem simbólica, à qual
Stephen apela no momento de perplexidade.
Algo permanece em estado larvar, não nascido e, nas fantasias, o filho (S. D.) se substitui ao pai (S. D.). Tal movimento é facilitado por esse último na medida em que se considera mais como um irmão, às vezes um rival. Um pai severo? Jamais! A devolução do filho, supostamente puritano, “ao seu Criador”, uma referência provável aos jesuítas que o educaram, parece insuficiente para estabelecer o
sentimento de filiação. Nem mesmo as fantasias construídas de “um parentesco místico”, isto é, de ser filho adotivo, lhe garantem um lugar na linhagem simbólica, na galeria dos antepassados, contados
retroativamente até a quarta geração.
A conseqüência disso localiza-se claramente na estranheza que marca a relação do sujeito ao seu próprio corpo. Desenhado como um enigma, esse corpo se apaga como um filme exposto ao sol ou se desprende do sujeito como a casca de um fruto maduro.
Com a psicanálise é possível perceber que para se atribuir um corpo, para poder ter um corpo e fazer algo com ele, o sujeito paga o preço da castração (SOLER, 1998). No seminário sobre o Sinthoma, Lacan inscreve a consistência corporal no registro do imaginário e esse corpo, que não se evapora apesar de sair fora a todo instante, é a única consistência mental do ser falante (LACAN, [1975-1976] 2007).
Por consistência o psicanalista se refere àquilo que mantém as coisas juntas, tal como um saco. O corpo surge, assim, como pele, como um saco que mantém juntos um monte de órgãos (LACAN, [1975-1976] 2007).
Depois de dizer que ter um corpo para adorar é a raiz do imaginário, e que o amor-próprio e a adoração do ser falante pelo próprio corpo se devem à crença em que têm um corpo, Lacan afirma que “a idéia de si como um corpo tem um peso” que “é precisamente o que chamamos de ego”, dito narcísico porque suporta esse corpo como imagem (LACAN, [1975-1976] 2007: 146). Uma das vicissitudes de “termos” um corpo e não de “sermos” um corpo, é que podemos ter uma relação com esse corpo como algo estrangeiro. É o que acontece com Joyce na medida em que ele deixa cair, em que larga (liegen lassen) o próprio corpo(5). Ele não manifesta interesse algum por sua imagem narcísica e chega a experimentar repulsa por esse corpo
do qual se solta, ou ao qual larga, como uma casca se desprende de seu fruto. Se as pulsões são os ecos do dizer sobre o corpo, em Joyce o dizer não ecoa desse modo e isso faz com que o sintoma seja, não um acontecimento de corpo (LACAN, [1975] 1987), mas, um acontecimento escritural."
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