domingo, 29 de setembro de 2024

uma brecha para a luz entrar

tenho sonhado à noite  

com um dente prestes a se soltar  

balançando de um lado pro outro  

até que enfim se deixa arrancar 

(a raiz, apenas um fio)


O inciso lateral

como é comum 

aos caprichos dos sonhos

agora é um dente

madrepérola furta-cor

e onde antes 

abria um sorriso

há um buraco vazio e escuro

por onde a luz pode entrar

(quanto valor tem uma mulher só?)


ouça, se estou me quebrando  

porque me sinto tão livre?  

estou tão frágil

o que serei quando mudar?


tenho sonhado à noite  

mergulhando em um poço raso

de água e areia

flutuando na superfície

recebo um beijo

(beijos são experiências tão íntimas)


ouça, se estou me quebrando  

porque me sinto tão livre?  

estou tão frágil

o que serei quando mudar?


para viagens longas e distantes

são necessários veículos que nos caibam

parece tão perigoso

viajar de portas abertas

ou com meio corpo para fora

(assim não há como chegar bem 

                     em lugar nenhum)


ouça, se estou me quebrando  

porque me sinto tão livre?  

estou tão frágil

O que serei quando mudar?


329 dias, ou menos, de sonho

é preciso acreditar nos sonhos

e na poesia

os dois põem as coisas 

em seu devido lugar

quarta-feira, 12 de junho de 2024

olhar

 olha para o lado

com quem busca o horizonte

nas linhas invisíveis do dia


como sei do seu amor

pelo por do sol

imagino que este olhar

busca o verde e a luz


guardada em sua boca 

semi-cerrada

intuo a coreografia

da risada

e do silêncio


meu amor 

derrrapa nas curvas

do seu pescoço

a contemplar o infinito


te amo

mesmo antes

de morar em sua história

sexta-feira, 31 de maio de 2024

pessoal

há tanto daquelas águas 

em seus olhos

há o verde neon das folhas novas

há as estrelas e cachoeiras

há nós, deitadas naquelas pedras

ou de mão dadas, mirando a lua

há seu cheiro de vento e mar

misturando o oceano

que somos

há um pouco da profecia

daquela minha poesia acerca do amor

há a poesia que compomos

estando sós

há a falta das carícias 

dos versos tristes

que eu cantava

antes de você chegar


há ainda nossas sombras

não as desprezemos 

sombras acomodam 

meu medo desmedido

de que a felicidade 

seja só 

mais um truque do caos

há o agora infinito

a deslizar

enquanto caminhamos

e é nele 

que quero habitar

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Estudo da tração na sutileza da diferença poema de Maria Izabel Iorio

 1.

uma mulher molhada

sobre uma mulher molhada

é audível, sólido


2.

uma mulher sobre outra mulher

não é preliminar é pré

histórico


3.

uma mulher

para amar uma mulher

é preciso comer com as mãos


4.

uma mulher

para amar uma mulher

é preciso cortar as unhas


5.

colar a trajetória no epicentro:

uma mulher que ama uma mulher aprende a lamber as coisas por den-

tro 

sábado, 7 de outubro de 2023

 - Estive lá, onde tudo começa. 

- E era como?

- Me sentia grata. E sabia qual era a raiz do mal.

- E qual era?

- Não eram os homens. Nem as mulheres.  O mal é querer controlar. Controlar o que acontece: na minha vida, na vida dos outros...

- Parece difícil.

- Eu vi meu pai. O rancor ao pai, ao pai do pai, morava no meio de seu peito. Eu estava lá, podia arrancá-lo. Era como se todo o mal que atravessa a vida dos homens da minha família estivesse naquela teia negra no plexo de meu pai. Podia, mas não devia. Não arranquei. Voltei em prantos, mas não arranquei. 

- Lá, onde começam homens e mulheres, você quis escolher uma natureza?

- Não, não precisava escolher. Não precisava pensar. Não precisava nem dizer nada. Lá onde tudo começa, eu só precisava ser. 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

conselhos

meu amigo me disse

sua pose de namoradeira

na janela, a espera

não combina

com esse lance de pegação

na sua idade a paixão 

é um parque em ruínas

conceitual, lindo e inútil 


ok, faça suas canções de amor

disco voadores

discretos, singelos

só os atentos notam


mas não vá cumprir o cliche da poeta

imensa, intensa, exagerada

e acabar com tudo

na Ana Maria Braga 


não espere amores

ao modo do castelo de malbork

cada pedra daquela

aguardou séculos 

antes de se acomodar 


guarde o cansaço 

não é porque

você esteve por tanto tempo

equivocada

que agora vai dar em nada


se emocione

sem medo

com as sombras dos olhos

ou as pintas da pele 

do dorso das mãos dela

tão comoventes 

quanto lábios e sexo


meu amigo me disse

se arrisque

seja leve, feliz e apaixonada

por cinco minutos

cinco dias

cinco semanas

você nem tem mais cinquenta anos

para infinitas histórias de amor


viva o encontro 

como o poema do frank o'hara

uma conversa com o sol

pode ser bela

mesmo sendo a última

domingo, 10 de setembro de 2023

aquela dança

em minha lembrança 

lascas de um dia azul


queria ter dito

sem parecer vulgar

que eu poderia gozar

só por dançar com você


não há meios fáceis de dizer

todo orgasmo acaba

toda dança acaba


aceito o que não foi

como o outono

das folhas das arvores

alimentando a terra

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

quinta-feira, 13 de julho de 2023

inútil

pode-se fazer as unhas
hidratar os cabelos
tomar um banho
(de chuveiro, de sol)
menos quando é noite
é difícil estar triste 
e só 
à noite

sabendo qual o melhor tipo
pode-se tomar 
algum metal
alumínio
magnézio
lítio

pode-se mirar o sol 
de olhos fechados 
o vermelho intenso 
das pálpebras 

pode-se
empregar o afeto
com o corpo
com o tempo
um ano tem 8.760 horas
(exceto as 2080 horas 
de trabalho e as 2600 horas 
dormindo)

Jeffrey Hall
da universidade do kansas, disse
que são necessárias 
60 horas 
para fazer um amigo
e 200 horas 
para fazer 
um melhor amigo
(quem tem 200
horas, meu deus?)
fecho o bloco de notas
a janela do site, do blog
lanço um sonoro
fodam-se as palavras
nem sempre 
a solidão é um luxo
Clarice

domingo, 2 de julho de 2023

Subjétil, amor

torcer a língua

no esforço

de dizer o amor

maquinar cenas

superfícies e suportes

nas quais o amor  escorra

nos corpos licorosos dos amantes


torcer a pena

e escrever aquele amor 

que nos faz perder 

o rosto

a família 

a cultura 

a tolerância

e os significados


escrever o amor como um mapa 

que nos ensine

amar em abandono

amar inumano

incorporal 

inorgânico


escrever um amor tátil, substância

amor às pedras

plantas

bichos

e cosmo


escrever um amor que raspe

o ranço dos discursos

um amor sonda

goiva

enxada

agulha 

linha 

coser

descoser

esgotar, sem medo ou vergonha

a miríade de eus 

que nos enchem

até criar espaços vazios para o amor


disparar  um amor projétil

que perfure

essa carne nossa de cada dia

até tocar

o corpo sem órgãos


escrever o amor dos corações suados

dos lençóis lambuzados

liberar a gagueira

os gritos

terrorismo poético

incêndios

coquetéis molotov do amor menor


escrever um amor potência

convulsão cósmica

tango sideral

até que esta escrita 

sublime e sutil nos atravesse

e imprima em nós

o incapturável amor