segunda-feira, 24 de março de 2025

De vidro

não é mais carne que se aproxima

é corte —

com rugas de cetim e dentes de açúcar


carrego um deserto em meus ouvidos

e elas vêm

com orações rotas

conchas quebradas

e uma pressa de se espelhar no que não fui


convidam

para encenar o pacto

os olhos cheios de nódulos

libido em mutação

gestos à míngua —

dançam em torno da fogueira do não dito

a língua enrolada no próprio umbigo


estou só

nem por isso exijo resgate

subo o galho mais torto da árvore

e faço dele meu altar

respiro entre líquens

acendo fósforos em minha própria boca.


desaprendi a gramática dos pedidos

inabitável

para quem só conhece o mapa

das carências urgentes


gozo negar a repetição

tranco a casa e a alma

os pés sujos do afeto doente


já não amo como quem implora

agora

acendo velas para deuses que não existem

e invento

a minha

liturgia



sábado, 8 de março de 2025

Ser mulher

Ser mulher é ocupar espaço em um mundo que tantas vezes tentou nos conter. É transformar dor em potência, medo em coragem, silêncio em voz. É carregar histórias no corpo, no olhar, no riso.

Ser mulher é dança e resistência. É saber que a mudança acontece no movimento – na arte, no trabalho, nas ruas, no amor, na liberdade de ser quem somos sem pedir permissão. É desafiar padrões, reconstruir narrativas, criar novos caminhos para quem vem depois.

Hoje é dia de lembrar que não somos apenas uma data: somos todas as mulheres que vieram antes de nós e todas as que ainda virão. Somos a força que não recua, a beleza que não se limita, o futuro que não se apaga.

Que nosso passo seja firme, que nossa voz seja alta, que nossa presença seja inegável. Porque ser mulher é existir em potência todos os dias.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

promessa

haveremos de nos lembrar

entre beijos

de todo desejo

que nascerá

naquela mirada

minha cabeça

levemente erguida

entre suas coxas

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Secção

seja bem-vinda.

tome um café, fique à vontade.

entre meus dedos

minha língua

mas abrir a porta

não solta os dentes.

o que fica, quando se vai

é o gosto do café

a colher, parada dentro da caneca

Nem o nome resiste na boca

só o gosto do café

sei o que fazer.

sem som, sem explosão

cortes secos me habitam

do outro lado, ninguém se move

ou vira estátua

ou poeira

ou nada

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Desvio

Disse "apaixonada com", e riram.

Se diz "por", afirmaram,

o certo é cair em si,

amor tem direção,

feito seta, destino,

um porquê bem amarrado.


Tropeço entre preposições e promessas,

confundo léxico e laço,

sou mulher de soltar verbos no vento

e amar sem gramática.


As coisas se movem no escuro,

aves que ninguém vê.

O tempo afunda sem alarde,

a vida que era minha, espalhada

pelas ruas onde não estou.


Apaixonada com

manhãs que abrem as janelas,

café quente que escorre a saudade,

livros que não terminam em ponto final,

dança dos dias sem ensaio,

a vida, que me quer

sem correção.


A casa cheia de vento.

Meus filhos, constelações distantes,

presenças ausentes

se acomodam na mobília,

nas cadeiras que já não arrastam no chão.


Eu os fiz inteiros,

frutas esperando a faca,

o miolo dos melões,

branco, intacto, intocado,

agora longe de minhas mãos.


Quem me amaria com toda a minha força?

Quem me tomaria com a mesma fúria

com que a água arrebata os barcos?

As marés não voltam para buscar o que deixam,

os pássaros não voltam, os pássaros.


Ser aberto é um fato, mas dói.

Preciso manter-me intacta,

fruto no galho,

a escuridão no ventre dos melões.


Fui despida, entregue,

e agora restam essas mãos

vazias na câmera escura,

prendendo fitas que ninguém mais verá.


A literatura que me toca –

o grotesco, erótico,

o belo que arde estranho, imperfeito,

o perturbador em fogo baixo.


O desejo de consumir,

ser consumida no amor,

romances que sejam porto,

e naufrágio.

O imperfeito que pede a boca, os dentes.


Delírios manuscritos.

Na escrita – me perder, me encontrar.

Ser abismos e claridade.


Sou eu quem traduz febres em palavras,

quem dança com o que falta,

quem faz do erro um lume.


Não amo só por,

amo com—

com pele, riso e fome,

com tudo que me faz errar

e, ainda assim, existir.


Quem aguenta o amor,

esse animal ferido,

essa fome sem cura?

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Vigília

Daí de onde me vês, 

sou forte, vigorosa, 

mas durmo tão pouco. 


Vem comigo, 

mas só se velar 

minha sesta 

ao meio-dia, 

depois das refeições. 


No sono, entrego. 

Entrego vulnerabilidades. 


És capaz, amor, 

de me ver dormir 

sem temer 

que eu precise 

mais que o suficiente 

de você? 


Não temas

eu mesmo cuido 

do que dorme em mim 

zelo pelo que me  falta.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Vulnerável

triste como um bebê

abandonado sozinho no berço

pensava que era saudades

mas era sono


sinto muito, Ana

ontem contava 

uma banalidade sobre nós

e percebi que esqueci seu nome

o rosto, aos poucos

vai se apagando 


estão de volta os tempos 

de navios

e poesia

tanta potência não colabora

é preciso estar vulnerável

para ser amada


entra-se na paixão pensando

"desse jeito é a primeira vez"

mas raro mesmo

é se lambuzar

da própria vida

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Seios

Somos mamíferos porque carregamos o poder de nutrir estampado no peito. Sem pudor, a ciência diz: as glândulas mamárias se organizam em lóbulos, ductos, auréola. Matéria-prima para o primeiro sustento. Mas nos sonhos, esses mesmos seios projetam outras tramas - a mística do toque, o aconchego ancestral, a delícia de alimentar e ser alimentada.

Em um cochilo, me vislumbrei amamentando amamentando em alguém e acordei perplexa. Lá, no território onírico, o peito era fonte generosa, guardava promessa de vida e de prazer; um gesto tão simples e íntimo que, no entanto, carrega séculos de mitos, tabus e contradições. Em outras paragens, recordo que a galáxia em que flutuamos chama-se Via Láctea "caminho de leite". Do grego gála, somos amarrados a esse "suco de peito" que nos abraça como espécie, lançando o cheiro doce do passado.

No meu poema (ver De mim ninguém sai com fome p. 75), escancaro as entranhas do mamilo, a textura e a cor, o poder de gozo, a fronteira entre o sacro e o profano. É curioso como a tal "civilização" permite aos homens exibirem seus mamilos impunemente, enquanto as mulheres são proibidas de ostentar o seu. E, assim, nossas culturas seguem vingativas — penalizam quem ousa mostrar a fonte geradora de vida.

Talvez seja essa força paradoxal que faz dos seios um emblema de tanto fascínio e repressão. Neles, cabem nutrição, erotismo, política e sonho, entrelaçados numa trama corporal e simbólica. A força dos seios no imaginário não é só biológica: é a nossa herança, a nossa maneira de existir e de criar - gerando leite, poemas e galáxias inteiras.


#ForçaDosSeios

#Mamíferos

#ViaLáctea

#CaminhoDeLeite

#PoesiaCorporal

#Amamentação

#TabusSociais

#CivilizaçãoVingativa

#CorpoPolítico

#MísticaDoToque



quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Orquestra de luz

a meia-noite sussurra

please, please, please,

meu susto hesita

na pólvora dos teus olhos


será bom

que anjos orquestrem 

meus medos?


declaro ao céu 

riscado de luz

não somos mais as mesmas

não há nada

do que se envergonhar

nem nada a temer

as horas tecem seu trabalho 

vestes de prata

e acontecimento 




quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Arquitetura do fim

1. Arquitetura do Afeto

Há uma engenharia no abandono,
silenciosa como a curva de um pássaro preso.
Os gestos mínimos,
pareciam erguer paredes invisíveis entre nós:
um copo de água que nunca era vinho,
mensagens não respondidas,
um "tudo bem?" dito como quem atravessa um campo minado.
A solidão ali não é abismo, é eco.

2. Quiet Dumping: Manual Prático

No trabalho eles chamam isso de quiet quitting,
mas no amor o conceito tem outro nome:
um suspiro mais longo,
um sorriso que não alcança os olhos,
a distração compulsiva de deslizar o feed do celular.
“Você está exagerando”, me dizia,
enquanto o ventilador girava
como se fosse ele a manter o ar entre nós.

3. Dos efeitos colaterais

A bula da relação advertia:
pode causar:

  • vertigem emocional,

  • naufrágios suaves,

  • a sensação constante de falar sozinha.

Contraindicações:
não administrar em corações esperançosos.

Dose recomendada:

o mínimo necessário para não romper.

Desde antes sinto
Que o meu play
é caminhar em direção à água.
Nos sonhos, estar na água
é tão prazeroso quanto voar.

Entrei nessa pensando que queria amor.
Amoris em latim fala de muitos afetos.
No proto-indo-europeu o AM pode ser a mãe,
dai para o sânscrito amati, que ama, cuida,
o grego antigo amáo, acariciar, desejar,
ou o alemão antigo amida, amizade, afeção.

Os romanos dividiam em:

  • Éros: Amor apaixonado e erótico.

  • Philia: Amizade e afeção entre amigos.

  • Ágápe: Amor altruísta e universal.

  • Storgê: Amor familiar.

Eu pensava que queria amor,
mas desejava apenas cuidado.
Queria falar do primeiro feriado da consciência negra,
ou do medo das enchentes de dezembro,
mas só consigo pensar na falta de amor.

4. Peixe cru e bolos veganos

Tudo que restava era cotidiano:
a vitrine de um restaurante qualquer,
um pedido de comida que nunca vinha sem hesitações.
“Sushi de novo?”,
ela perguntava sem realmente querer saber.
Às vezes penso que as relações modernas
são como esses bolos veganos:
bonitos, funcionais,
mas sem o gosto que o sustente.

5. Piscinas e naufrágios

Eu lembro de quando ela ria,
quando as viagens eram mapas vivos.
Agora, tudo é piscina,
um espelho que engana profundidade.
“Mudam porque a gente deixa”,
eu dizia, mas ela ficava lá,
quieta, girando a cerveja como um ritual de esquecimento.
É irônico como algumas águas não molham,
só afogam.

6. Inventário do adeus

Na mesa, ficaram os brincos de gota,
não abertos.
No ar, o som do ventilador girando.
Na porta, o silêncio,
mais definitivo do que qualquer palavra.
“Já vai?”, ela pergunta,
e eu quis responder:
“Não estou saindo agora.
Eu já fui embora faz tempo.”
Mas não disse.
Deixei o vento fechar a porta.