quarta-feira, 8 de outubro de 2025

a dignidade das coisas que não desistem

gosto de fazer 
o caminho de casa 
até o trabalho 
à pé

em outubro as calçadas
ficam cobertas pelas flores
que caem dos ipês

e hoje havia um cabide
estendido na calçada
como quem descansava 
dos ombros
esperando um corpo

não estava torto
só um pouco sujo
solto ali
com a dignidade 
das coisas que não desistem
pendurado no nada dizendo
"ainda sei sustentar"

mamãe
a primeira ambientalista
que conheci - teria, 
sem titubear - catado
colocado no braço
junto com as roupas doadas
os panos de prato
lavado na bacia
onde lavava roupas
as pernas em volta
nos domingos de sol

hesitei, pois sei 
de minhas gavetas cheias
lembrei do laranja do uniforme 
da SLU
de tudo que vinha do lixo
do seu sorriso
ao encontrar um brinquedo inteiro
um chinelo de par imaginário
(ou só as correias)
uma blusa quase nova
a carne, a verdura quase boa 

mamãe ainda é 
a colecionadora 
de pequenas sobras
sombras de indignidades

sustentei a recusa
afinal há todos os cabides 
há roupas demais
em meu armário
e há essa nova fase 
azul bebê - cor 
de lágrimas
da maciez
e do silêncio

e o cabide?
será que continua
quieto
oferecido
na calçada?
será que resiste
à fome limpa,
à sólida escassez
do mundo?

sábado, 4 de outubro de 2025

A visibilidade é uma armadilha

“A visibilidade é uma armadilha”, escreveu Foucault, e eu sinto essa frase reverberar em mim como uma sentença paradoxal. Quero ser vista, mas o desejo de visibilidade se confunde com o medo de ser reduzida ao olhar do outro. Quando apareço, estou sujeita a interpretações, julgamentos, distorções. Quando desapareço, sinto-me abandonada, sem prova de existência.

Carrego um medo antigo de me tornar invisível — trauma que nasce na infância, quando a ausência de atenção parecia significar inexistência. A criança que fui ainda grita: “olhem para mim”. E a adulta que sou percebe que esse grito pode me aprisionar em redes de aprovação e exposição.

Na vida e nas relações, oscilo entre a entrega plena e o receio de me apagar. Ser presença não é apenas ocupar espaço físico ou digital, mas afetar e ser afetada. Às vezes me pergunto: qual é a medida justa entre estar presente e não me perder no reflexo dos outros?

Nas redes sociais, esse dilema ganha contornos cruéis. Ali, cada aparição é vigilância, cada silêncio é esquecimento. É como se eu tivesse que performar presença para não desaparecer, mesmo quando o desejo seria recolher-me. O algoritmo, tal como o panóptico de Foucault, captura meu desejo de ser reconhecida e o devolve em doses que nunca bastam.

Estou aqui hoje pensando que minha luta é por um lugar onde a visibilidade não seja prisão, mas escolha. Onde a presença não dependa de curtidas nem de olhares furtivos, mas da potência de estar em relação com autenticidade. Talvez a saída seja deslocar o foco: não perguntar o quanto me veem, mas o quanto eu consigo me ver sem me esconder, onde sou vista sem performar, o quanto posso existir inteira sem precisar da vitrine. E não é por acaso que esse post esteja sendo ilustrado pela foto recortada pelo olhar da amada @ana2018carolina, alguém que vem me proporcionando a mais maravilhosa experiência de se deixar ver e de me fazer sentir vista. Obrigada amor ♥️